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Diogo Martins

Sobre o luto

(dedicado ao Agrupamento de Escuteiros 1046 de Nine)

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Queria desde há muito escrever um texto a partir do filme Manchester By The Sea, de Kenneth Lonergan (2016), e, nesse sentido, tenho vindo a anotar uma série de coisas risivelmente aforísticas em tudo o que vou tendo à mão, como talões de multibanco ou as folhas de rosto dos livros que fui lendo. Pelo meio, infiltraram-se outros textos (na verdade, todos os que publiquei no Vila Nova), e a coisa foi levedando, informe, aos empurrões contra as frases. Talvez a razão de ter sido assim resida nisto: escrever sobre a perda de alguém e a experiência do luto, temas maiores no filme de Lonergan. O meu medo seria o de romantizar a melancolia, de ceder à tentação elegíaca, de galvanizar a escrita, fazendo-a parecer mais (mais falsa, mais “literária”) do que aquilo que lhe compete ser (angústia de Roland Barthes, após a morte da mãe: “Não quero falar disto com medo de fazer literatura – ou sem ter a certeza de que não o será – embora de facto a literatura tenha origem nestas verdades”, in Diário de luto, p. 31). Dá vontade de fazer eco de outras vozes, uma câmara de ressonância de todas as citações meritórias sobre a dor, a morte, o amor ou o luto, mais os espaços em branco que tudo isso acumula no lado de dentro do corpo. Mas sucumbo à paráfrase por falta de jeito.

Não sou muito dado a pódios, muito menos quando se trata de pontuar com x estrelas livros, discos ou filmes, mas arriscaria dizer que Manchester By The Sea foi dos melhores filmes a que assisti este ano. É naturalista no seu despojamento e visualmente glacial (passa-se no inverno, e faz frio no interior de Lee Chandler, o protagonista), com uma ferocidade contida que se vai esbatendo (embora isso só mais adiante se perceba), porque assistimos a blocos de sequências que baralham o presente da ação com invasões da memória. Joga-se aqui, portanto, de um lado, o presente e, de outro lado, o passado – até não fazer mais sentido pensar-se diametralmente nestes planos, mas antes subjugá-los a uma torção contínua, comprimindo-os num mesmo sufoco: o de um passado que se faz traumaticamente presente. E que se envergonha, até, da remota hipótese de saber que a vida, como o rio para os estoicos, continua o seu curso, indiferente aos nossos apelos secretamente suicidas e à disciplina diária de quem se esforça por ser um corpo sem sombra, num estado de apagamento contínuo. Eis Lee Chandler (Casey Affleck).

Ou seja, de um lado, o dia a dia de um indivíduo de poucas falas, que vive sozinho num mísero quarto subterrâneo, enterrado vivo, dividindo-se entre desentupir canos e recolher o lixo, para depois se sentar em bares pela noite dentro, cerveja atrás de cerveja, indiferente aos flirts femininos; até que, já podre de bêbado, se serve de qualquer estímulo involuntariamente exterior para explodir e andar à porrada. De outro, é um pai de família, casado com Randi (Michelle Williams) e com três filhos pequenos, casa própria em Manchester, mais a atmosfera inconfundivelmente viva e visceral de um lar – e este Lee corresponde a essa incursão pelo passado, figura de memória que o filme atira para a glacialidade do presente sem qualquer maneirismo técnico (não há sépias a demarcar contrastes entre o que já se passou e o que se passa, nada que nos permita detetar que estamos diante transições entre tempos cronológicos distintos). É contra a verdade idílica desse Lee de outrora que se dão os achaques de fúria e a rotina quase monástica do Lee atual (e percebemo-lo devagar), o mesmo que se vê obrigado a regressar a Manchester por lhe ter falecido o irmão, vítima de uma paragem cardíaca, tendo depois de digerir o choque de se saber nomeado como tutor do sobrinho. “I can’t be his guardian”, confessa diante o advogado, reagindo em desespero ao testamento do irmão. Pior, porém, é a condição primordial de ter de residir de novo na vila que se tornou, para Lee, sinónima do intolerável. Pois acontece, em repto freudiano, que fugir (de um lugar, de uma memória difícil) é justamente o meio mais adequado para acabarmos nos braços do que procuramos escapar.

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Não pretendo adiantar mais pormenores sobre o filme, porque queria, em última instância, que aqueles que ainda não o viram sucumbam (como aconteceu comigo) à sequência rememorativa que enforma o que viria a tornar-se a via crucis de Lee (sentidos figurados à parte, tudo começa, de facto, com uma caminhada a altas horas da noite, após uma farra com amigos na sua antiga casa). Interessa-me, antes, destacar o trabalho de edição dessa sequência fílmica, o modo como aí se visibiliza o arranque da memória e os caminhos travessos que esta empreende para se justapor à vida de todos os dias, tornando mais espessa a noite de quem tudo perdeu e já nem a mais ínfima luz se acha digno de receber. Vemos Lee no consultório do advogado, a reagir ao testamento do irmão; vemos o desamparo do advogado, incrédulo com a incredulidade do cliente; e vemos, então, mais que o rosto, o ar de Lee, esse invisível que se inscreve na superfície visível da pele (o “sem-fundo”, segundo José Gil), as “pequenas-perceções” microscópicas que nos desenham diante os olhos o desassossego maciço de Lee. Vemo-lo a olhar sabe-se lá para onde – não é objetivamente a janela, nem a paisagem nevada que se estende para lá dela, mas antes esse estádio intermédio onde toda a realidade se suspende, onde todas as referências levitam, onde o remorso (mesmo ao fim de tantos anos) revela não ter feito quaisquer cedências à possibilidade de “inscrição” do luto, para empregarmos esse termo tão caro a José Gil (“Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso”, in Portugal, Hoje: O Medo de Existir, p. 16).

Por outras palavras: aí se manifesta o intervalo onde todo o presente se esgota, e onde este se deixa esmagar por aquilo que é a assombração sem escrúpulos do passado. Não dá tréguas ao corpo, mantendo-o refém da realidade trágica que se abateu sobre o sujeito. Como se a lei fosse esta: se o teu corpo ainda resiste, então existe para sofrer, para expiar uma culpa à qual é imperdoável sondar-se um perdão. Porque enquanto se sentir indesculpável, Lee finge manter intacto o mínimo elo de ligação com o que ficou debaixo de cinzas; isso pressupõe a inalienabilidade do outro (da esposa, em particular, agora ex-mulher), da sua presença e do seu julgamento. Trata-se, assim, de uma sequência que visibiliza o modo de atuação da memória, e do que nela não se destrinça da culpa, da mágoa e dos absurdos da vida: blocos fulminantes de imagens que nos chegam à cabeça sem aviso, como ervas daninhas que cercam a atenção pelas frinchas, devorando-a por inteiro; que demoram o tempo que for necessário para atestarem a sua ação disruptiva, tomando conta do que resta até à consumação do desastre (e do desastre que se lhe segue), tudo soturnamente orquestrado pela propensão dramática do Adagio in sol minore per archi e organo (está no YouTube para quem quiser ouvir). Eis, portanto, Lee Chandler no gabinete do advogado, mais um sobrinho adolescente de quem lhe coube agora tomar conta, mais a inclinação proustiana da memória, com o que esta tem de mais feroz, capaz de desrealizar a realidade do presente, forçando Lee a descer outra vez aos infernos.

Os outros vestígios”, escreve o poeta Jacques Roubaud, “registados pelos outros sentidos, só existem em mim. Quando tropeço neles, sufoco” (in Alguma Coisa Negro, p. 53). E é ainda com Roubaud que me sinto tentado a ladear a catábase de Lee:

Onde a tua inexistência era tão forte. ela transformara-se numa forma de ser.

Em mim reinava a desolação. como se conversasse em voz baixa.

Mas as palavras não tinham força para atravessar.

Atravessar apenas. pois não havia o que atravessar.

Viramo-nos para o mundo. viramo-nos para nós mesmos.

Não queríamos habitar nada.

Eis o núcleo habitual do infortúnio.

Tratávamo-nos por «você». antes.

Contigo morta, já só podia dizer: «tu». (p. 25)

Roubaud publicou Alguma Coisa Negro em 1986, em memória da sua esposa, Alix Cléo Roubaud, fotógrafa de origem canadiana, asmática, que falecera aos 31 anos com embolia pulmonar, em janeiro de 1983. Segundo se lê no posfácio de José Mário Silva, responsável pela tradução do livro, “Sozinho com as mais de seiscentas fotografias deixadas pela mulher amada, o poeta mergulhou num profundo estado de afasia. […] Durante trinta meses, foi incapaz de escrever uma linha. É com este Alguma Coisa Negro, o livro do seu luto singular, que se ergue por fim dos abismos da dor” (pp. 245-6). Mas o que é este erguer-se dos abismos? Ou melhor: como se realiza por escrito esse movimento ou atitude, não para descrever a dor de uma perda (descrever é sempre entulhar com palavras um vazio real que a morte física torna impreenchível, tornando tudo “num enunciado maleável, menos exigente, frouxo, irrisório, e, em suma, falso”, p. 143), mas para mostrar ou fazer-ver a dor, a perda, o lugar em branco que enforma a ausência/presença desse vazio pessoal e intransmissível?

Dizer o luto, a morte, a perda – precisa-se, para esse efeito, de uma outra linguagem, conquistada no interior da única linguagem disponível. A atitude de quem escreve torna-se radicalmente diferente, levando a escrita a desconfiar de si própria, a exigir mais do sentido que se enquista nas palavras (escreve Roland Barthes no seu diário: “Não dizer Luto. É demasiado psicanalítico. Não estou de luto. Tenho dor”, p. 81). A poesia de Alguma Coisa Negro não é outra coisa senão isso: uma forma de torcer os usos convencionais da escrita e das fórmulas poéticas, num exercício experimental que obriga a língua a mostrar, por imagens verbais, “o pescoço estrangulado pela corda do despertar” (p. 233), “[o] inferno circular de ver e ver / Sempre o teu rosto apagado de onde o fôlego se retirou” (p. 233), mais “as derivas divergentes das sílabas do teu nome” (p. 97). Na luta entre a linguagem poética e o silêncio, o que conta é dar a este último as honras de sair vencedor – e isso só se faz apagando as palavras que estão a mais, limando o gume dos versos, amassando-lhes a sintaxe (mestrias às quais não é indiferente a pertença de Roubaud, poeta-matemático, ao grupo OuLipo, o que se denuncia na forma como o poeta estruturar a este livro: nove partes, cada uma com nove poemas, cada poema com nove versos). “Não mexas nisso, não mudes uma só palavra”, atenta o sujeito (p. 117). Se tiver que ser, então que só restem espaçamentos em branco, desfalques, letras em órbita no branco da página, palavras novas – tudo o que for preciso para espremer o silêncio e forçá-lo a decalcar a irredutibilidade dos nomes, o nada, ou a coincidência da morte consigo mesma: “Insisto em circunscrever o nada-tu com exactidão […]” (p. 141). Com exatidão, logo “sem descrição” (p. 143). Daí a violência de um baque surdo como este, que insulta até qualquer tentativa de interpretação: “Impossível escrever, casado/a com uma morta” (p. 101).

E a Lee Chandler é impossível falar, quanto mais ceder à desimplicação da escrita e ao jogo heteronímico (o devir-outro) da expressão poética. Manchester By The Sea é um filme sobre o luto fechado em si mesmo e a experiência de lhe sobreviver, dia após dia, a partir de falhanços em série, uns a seguir a outros, na grande máquina em que se pode tornar uma culpa desesperada. É também um filme sobre o que no luto permanece intraduzível por palavras, a não ser, como atrás se referiu, por outras linguagens a-verbais, como as irrupções de violência contra desconhecidos que parecem existir com o propósito solene de serem esmurrados em bares. (Podemo-nos questionar: Lee afoga a mágoa no álcool, como correntemente se diz, para atenuar, por algumas horas, uma culpa que recusa qualquer esforço de denegação, ou usará Lee o álcool conscientemente para se afundar ainda mais nessa mágoa, para implicar-se ainda mais nela, sentindo-lhe melhor o sabor a dano?) É sobre sobreviver negativamente, no limiar mais residual da existência, em contínuo fading-out (ou a ficção desse desse incumprimento em relação à vida, como as personagens de Kafka, Beckett, Musil, ou o Livro do Desassossego). “Quando a tua morte tiver acabado. eu estarei morto”, escreve Jacques Roubaud (p. 109) – o que, no plano existencial de Lee, seria pensar que o luto só se cumpre em definitivo no dia em que chegar a sua própria morte. Até lá, exila-se do mundo, ata-se à obscura mecânica dos dias (as tarefas de bastidores: canos de água, autoclismos, coisas assim), faz companhia à tragédia que o ensombra.

O filme dispõe-se no tipo de hiato insuperável que se abre numa vida, pondo logo de lado, sem falsas medidas, a possibilidade de se aspirar ao happy ending, a catarses bem-sucedidas. A vida não se faz apenas com vencedores natos, luminosos como medalhas, desses empreendedores que regurgitam com jactância os doze passos para o sucesso, até com uma perna às costas. O realizador Kenneth Lonergan quis precisamente notar que, a par desses vencedores (entre todos os outros que, por fotos, se desunham pela sua quota-parte de triunfo postiço nas redes sociais), outros há que só querem que os deixem derrotar-se em paz, perdendo todas as batalhas, sem um pingo de autocomiseração: “You can’t get through life without something happening to you that you can’t stand, and there’s nothing wrong with putting that in a story”, afirma ao The Guardian. E, em entrevista à Rolling Stone, não poupa na contundência: “I don’t like the fact that, nowadays, it feels like it’s not permissible to leave something unresolved. I mean, what the fuck is closure? Some people never get that. Some people live with their trauma for years. […] I don’t like this lie that everybody gets over things that easily. Some people can’t get over something major that’s happened to them at all; why can’t they have a movie too? Why can’t there be one film about somebody who doesn’t magically bounce back?”

Manchester By The Sea exibe-nos a ferida que se pretende aberta, não por cobardia, não por masoquismo, mas porque, enquanto cá se anda e se sobrevive à passagem dos dias, nos cabe ir à luta – mesmo que seja para perder, sabendo de antemão que se perde sempre, e continuando o que houver a continuar. Não há aqui final feliz, nem maneira de fazer soar isto como mel para os ouvidos (faríamos melhor figura calados, então). Não há frases nos diálogos do filme potencialmente convertíveis em epígrafes para fotos de perfil. Há, quanto muito, a consolação (que é temporária, e o filme sabe disso) de nos desfazermos pela voz numa gaguez contínua, em solecismos, com frases ditas aos bocados e arrancadas a ferro do fundo do estômago, sem poses nem fotogenia retórica. O diálogo final entre as personagens de Michelle Williams e Casey Affleck (que pôs o próprio realizador a chorar na rodagem) ergue-se a partir de dois corpos que tentam verbalmente serenar aquilo que, por dentro, se bate aos murros e às mais altas agressões de que um tipo é capaz consigo mesmo.

I can’t beat it”, eis como se expressa Lee, depois, à mesa com o sobrinho, tentando explicar-lhe a impossibilidade de se manter no lugar onde luto e o remorso esmagam mais. A secura da expressão – “I can’t beat it” –, o que nela existe de desconsoladoramente raso, contribui somente para elevar toda a cena, assim como todo o filme, a um realismo inexcedível. É esse o seu poder de convocação do real, daquilo que no real da vida há de mais propício a comover-nos e a fazer-nos sorrir, o clima de familiaridade que imediatamente se estreita entre nós e as personagens, entre nós e os planos de imagem, entre nós e a simplicidade dos diálogos, prosaicos e insubstanciais (mas precisamente substanciais por isso), ou o que neles rejeita a vocação para o dito expressivo, a citação decorativa. É isto, aliás, uma das forças maiores deste filme: arrastar para um diálogo o incomunicável de toda a intenção de comunicar; fazer com que a vida, isto, atravesse o filme e, tal como Lee, nos coloque diante a suposição de já estarmos mortos por dentro, aflitos por termos ainda tanto que dizer à vida e tanto a dizer sobre ela. Mas sem saber como ou com que palavras fazê-lo.

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Podemos, por isso, concluir que, do lado do espectador, Manchester By The Sea é um filme intolerável, sofrível do início ao fim? Longe disso. O filme também nos incita comedidamente a rir, sobretudo a partir de Patrick, o sobrinho de Lee (o estreante Lucas Hedges, que saiu daqui com uma nomeação ao Óscar de melhor ator secundário). Lee move-se com o carisma e a exuberância da idade da parvalheira, com a curiosidade vitalista do corpo na fase em que ele mais se presta à exploração do mundo (o mundo dos afetos na relação com o tio Lee, com os amigos, as duas namoradas, as primeiras experiências sexuais, as conversas e as situações que caem a despropósito: por exemplo, discutir a série Star Trek com os amigos no dia em que o pai lhe morre; o telemóvel de Patrick a vibrar-lhe no bolso das calças a meio da missa fúnebre; ou o momento em que, a meio da noite, o rapaz tem um ataque de ansiedade ao abrir o frigorífico, deparando-se com uma pilha de frangos congelados – um encontro caótico com coisas mortas, versões diferidas do corpo paterno que, ainda na morgue, aguarda por ser sepultado).

Em primeira e última instâncias, o filme reafirma o amor e a empatia como lados indissociáveis da morte, da perseverança e do tempo que o luto exige, se não para se consumar em absoluto, pelo menos para não se evitar a si mesmo. “People don’t always care about their parents, their children, their brothers or sisters”, refere Lonergan; “but when they do, it’s pretty powerful. It’s almost not worth being alive if you don’t have that connection” (in Rolling Stone, em linha).

Veja-se, por exemplo, um livro como O luto é a coisa com penas, o primeiro de Max Porter (com tradução de Daniel Jonas e edição da Elsinore). Escrito quando Porter se achou viúvo na casa dos trinta e com dois filhos demasiado pequenos para compreenderem o desconsolo do vazio e o negrume da depressão, O luto é a coisa com penas dispõe-nos incursões pela perda de alguém – a esposa, a mãe – mediadas pela leveza do humor: “Muita gente / dizia ‘É preciso dar tempo ao tempo’, quando tudo o que precisávamos / era detergente, champô para lêndeas, cromos de futebol, / pulhas, arcos, setas, arcos, setas” (p. 48). O luto, aqui, encena-se como aprendizagem de convívio com aqueles que nos são mais próximos – e de convívio, inclusive, com a própria mágoa do luto, que assume aqui a figura de um Corvo, essa ave tão fertilmente simbólica no imaginário popular. O Corvo invade de rompante a vida deste pai e dos seus meninos, falando-lhes pelo seu próprio bico:

Muito romântico, o nosso primeiro encontro. Portámo-nos mal. Zigue-

zague. Apartamento de dois andares, duas camas na parte de cima,

ligeira falha farpada, entrei facilmente à socapa pela parede, no quarto

no sótão para ver os meninos de algodão dormindo no seu silêncio,

um rumor intoxicante de crianças inocentes, cotão, crrác,

gac-pac-nac, o lugar estava pejado de luto profundo,

cada superfície Mãe morta, lápis de cor, trator, casaco,

galocha, cobertos com uma película de pesar. Desci as escadas

de Mãe Morta, sussurro plim plim de garras recurvas até

ao quarto do Papá, ainda há pouco da Mãe e do Pai. Eu era

Herne, o caçador mocho, pito. Mutilado. Aqui está ele.

Apagado. Pálido de ébrio. Ajoelhei-me sobre ele

e cheirei o seu hálito. […]

Pus a minha garra no seu globo ocular e pesei-o, extorquindo-o por

prazer ou misericórdia. Arranquei uma pena negra do meu capuz

e deixei-a na sua fronte, como, sua, fronte.

Como lembrança, como aviso, como pincelada de

noite ao alvorar.

Como uma pequena fresta no pesar.

Dar-te-ei algo em que pensar, segredei eu.

Ele acordou e não me encontrou no meio da escuridão

do seu trauma.

[…]

(pp. 18-9)

O Corvo ensina o pai a lidar com a dor da perda em modos menos reativos, menos furiosos. Predispõe-no a ceder espaço à ternura, permitindo a esta que o comova: “[Os meus meninos] Oferecem-me espaço no sofá junto deles / e a dor de serem tão naturalmente queridos é como / a duma apendicite” (p. 56). E, last but not least, a plenitude do luto ensina o pai a elevar o tempo como imo e substância inalienável da sua (e nossa) condição humana: “Seguir em frente, como conceito, é para pessoas estúpidas, porque / qualquer pessoa razoável sabe que o luto é um projeto a longo prazo. / Recuso-me a ser precipitado. Que nenhum homem atrase / ou acelere ou componha a dor que nos caiba em sorte” (p. 107).

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Acontece-nos ser depósitos de infinitas verdades, autênticos cemitérios vivos onde ressumam vozes e ecos de antepassados, sejam os que guardamos em fotografias, sejam esses que, desde a raiz de todos os inícios, agem obscuramente como forças do cosmos. Junte-se os livros que lemos, as imagens, a música, mais os ângulos mortos por onde, diria Freud, o inconsciente nos espreita, agindo em nosso lugar. Em rigor, nada do que dizemos, nada do que pensamos, nada do que possamos sentir quando perdemos alguém que nos é insubstituível – nada disso nos permite usufruir do consolo e da confiança de dizermos, pensarmos ou sentimos algo de inconfundivelmente novo, algo nunca antes dito, pensado ou sentido. No entanto, nenhuma destas repetições aparentes retira ao que somos a sua propensão para dizer, pensar e sentir seja o que for de forma genuína, gratuitamente genuína, na sua pura afirmatividade de ser, de existir(-se) irrepetivelmente. (De facto, haverá alguém que sinta amar a sua cara-metade em desvantagem, só porque lera, a dada altura, um livro como o Fernanda, de Ernesto Sampaio? Ou que julgue a sua dor menos intensa, e por isso menos honesta, porque nunca fora forçado a fazer a terrível escolha de Sophie, no conhecido filme com Meryl Streep? Barthes anotara esta questão após a morte da mãe: “Poder viver sem uma pessoa que amávamos significa que a amávamos menos do que julgávamos…?”, p. 76.)

Há clichés nisto tudo (sobretudo se é de amor que falamos), mas, em contrapartida, de outra forma não reconheceríamos o chão sob os pés, a evidência latente da nossa própria mortalidade, a matéria humosa de que nos revestimos como seres de carne e osso (dois constituintes que se opõem ontologicamente, segundo Peter Sloterdijk: por um lado, a carne impulsionando a metafísica, esse além-túmulo que desafia as leis temporais e dá ânimo à fé de muitos; por outro, os ossos impulsionando o cinismo, “sorrindo ironicamente […] como demora sarcástica da consciência junto do nulo, do efémero. Juntos, o cinismo e a metafísica falam desta vida risível com o humor próprio da aniquilação”, in A Mobilização Infinita, p. 94. Simplificando: recordo-me da conversa à lareira entre Virginia Woolf (Nicole Kidman) e o seu companheiro, no filme The Hours (de Stephen Daldry, 2002): quando este questiona aquela sobre o porquê de uma personagem ter necessariamente que morrer no romance, a autora de Mrs. Dalloway responde: “Alguém tem sempre que morrer para que nós passemos a valorizar mais a vida. É o contraste.”).

E é de contrastes, de ironias da vida e de toda a matéria sensível que são feitos os dizeres, os silêncios pesados, os esgares de Lee Chandler, de Patrick, de Randi, o mar no inverno e os sítios que mapeiam a Manchester deste filme. É dessa espessura matérica, imediatamente reconhecível por osmose, que são feitos esses instantes de humor que acontecem nas intermitências dos velórios e dos funerais, na forma de pequenas conversas em paralelo sobre absolutas nulidades (o futebol, o euromilhões, o pneu do carro que furou – tretas que, em excesso, acabam por desrespeitar a gravitas do momento, a identidade do falecido e os familiares que o choram). É também aí que reside o incómodo perverso de não nos concentrarmos numa homilia porque temos, de repente, o refrão do Despacito a moer-nos a cabeça na mais inoportuna das circunstâncias. Coisas assim, do mais vulgar que existe, com mea culpa.

Essa mesmíssima matéria é o que nos faz também chorar pelos filhos que não são nossos, pelas mães que conhecemos de vista, pelos irmãos que a dor do momento nos concede de empréstimo, por transfusão de sangue imaterial (mas que nem por isso nos corre menos nas veias). A dor do outro nunca é inteiramente e integramente nossa; e talvez seja essa disjunção, essa impossibilidade de tornar fundíveis, homogéneas, duas ou mais existências, aquilo que mais prontamente nos faz chorar por vermos alguém chorar a morte dos seus. Podemos dizer que nos estamos a pôr na pele do outro; é uma expressão feliz, mas ontologicamente cínica. O verdadeiro risco passa por reconhecermos que a pele do outro é de aço impenetrável, um casulo onde o nosso corpo ora fica apertado, ora com folga a mais para ajustar as medidas – e, mesmo assim (ou por força disso), face a face com essa alteridade irredutível (a nudez do rosto com que Emmanuel Lévinas fundou toda uma ética filosófica), a verdade desse risco passa por nos sentirmos genuinamente vulneráveis, com ou sem lágrimas nos olhos. O facto de não precisarmos conhecer, até à exaustão analítica, os contornos contextuais de um luto para admitir que a dor nos outros é implacável nos seus desígnios (“Toda a gente avalia – sinto-o – o grau de intensidade de um luto. Mas impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quanto atinge alguém”, escreve Roland Barthes, p. 18). Sabemos, porque sim, que a dor nos outros se revela, pessoalíssima, como “Alguma coisa negro que se fecha. e se tranca. uma deposição pura, inacabada.” (Jacques Roubaud, p. 123).

É isto, o absoluto dessa deposição. Mas também pode ser como o Corvo do livro de Max Porter, que murmura deste jeito ao marido, a braços de súbito com a viuvez e dois meninos sem mãe: “Ficarei até que não precises mais de mim.” (p. 16). Não me considero exemplarmente católico (o mais justo é nem o ser), mas não me é indiferente ouvir a expressão “Que descansem em paz”. Sempre que ouço isto, também digo ámen.

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Referências:

Trailer de Manchester By The Sea: https://www.youtube.com/watch?v=gsVoD0pTge0

Roland Barthes, Diário de luto, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Edições 70, 2009.

José Gil, Portugal, Hoje: O Medo de Existir, 12.ª ed., Lisboa, Relógio D’Água, 2008.

Kenneth Lonergan, entrevistado pelo jornal The Guardian: https://www.theguardian.com/film/2017/jan/09/kenneth-lonergan-golden-globes-nominee-manchester-by-the-sea

Kenneth Lonergan, entrevistado pela revista Rolling Stone: https://www.rollingstone.com/movies/news/manchester-by-the-sea-the-story-behind-sundance-2016s-best-movie-20160201

Max Porter, O luto é a coisa com penas, trad. Daniel Jonas, Lisboa, Elsinore, 2016.

Jacques Roubaud, Alguma coisa negro, trad. José Mário Silva, Lisboa, Tinta-da-China, 2016.

Peter Sloterdijk, A Mobilização Infinita. Para uma crítica da cinética política, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa, Relógio D’Água, 2002.

(Imagens: fotogramas do filme Manchester by the Sea)

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