“E, o poeta, pelo único meio que conhece – a palavra -, tenta dar sentido e descrever a essência das coisas, a essência do sentimento em cada olhar, em cada movimento de respiração, em cada momento da vida, na única expressão sincera de liberdade. E o poema tenta, aqui e agora, manter esse momento que se escapa de nossas mãos porque ele tem a origem na sensibilidade e não pode apreender e manter da maneira como os objetos se mantêm.”
Gostaria de pensar que o ser humano tem a capacidade e os meios para expressar tudo o que deseja com exatidão, mas não é assim, uma vez que traduzir sentimentos, intuições… é uma necessidade difícil e à linguagem é impossível atingir a perfeição. Mesmo assim, a poesia permite-nos abordar, com todos os seus elementos, esse mundo sensível e, ao traduzir a realidade através do poema, salva-nos do abismo que representaria a incapacidade de se expressar.
Embora um pouco modificada, gostaria ainda de usar a imagem da caverna de Platão. Pensemos, então, em Platão e façamos o caminho inverso para a caverna. Para vir da contemplação do sol com a razão, atravessar o mundo com a certeza de que somos parte da realidade que não escolhemos, mas podemos superar, e descemos à caverna que Platão presumiu superável. O poeta inverte a ordem, absorve a realidade, torna-se sensibilizado para este mundo contraditório, bonito e terrível ao mesmo tempo, e vai para aquele mundo interior que reflete as sombras através da palavra. Uma palavra, às vezes muito limitada, uma palavra que precisa de alegoria, símbolo, música, corpo e movimento para representar o irrepresentável. Uma palavra que apreende esse conhecimento que o mundo exterior nos dá, beleza e crueldade, contradição… e tenta expressar o inexpressável para transformá-lo em essência. Uma essência que, com vertigem, tenta construir o mundo através de elementos que nascem na razão, intuição e sensibilidade ao mesmo tempo. Uma essência que precisa ser universal para que outros possam retirá-la da caverna e, num caminho inverso, transformá-la, observando a realidade, em sua própria razão e na expressão imanente do mundo.
O poema, essa visão do irrepresentável
O poema é essa visão essencial do irrepresentável, essa intuição. Como Gamoneda salienta, o sem nome não tem existência intelectual, é o desconhecido e o desconhecido precisa de um idioma de “revelação”. A poesia gera esse conhecimento da realidade que ela mesma revela e cria.
O poeta é um ser vivo numa realidade, uma realidade que se transforma no interior desse ser humano e torna-se num elemento subjetivo, significativo, sensível e essencial que ganha vida através do poema. Mas, como entender o que à nossa frente acontece todos os dias: a morte de inocentes ou a beleza do amanhecer? Como transmitir tudo o que se mexe dentro de nós quando olhamos para qualquer um desses factos? Como comunicar o que vai além do meramente racional? Como exprimir a vertigem que a própria realidade nos dá? É essa palavra, esse poema que a acolhe e essa capacidade simbólica que aperta o indizível. Todorov definiu o poema como o que os sinais não simbólicos não conseguem transmitir. Estes símbolos são intraduzíveis e o seu significado é plural: inesgotável, alimentam-se da universalidade da própria intuição.
Símbolos que saem do poeta para atingir o conhecimento na tentativa de transmitir a realidade e chegar ao leitor que os vai tornar em fonte inesgotável do seu próprio conhecimento com cada experiência de vida.
Salvar o mundo pela poesia
Assim considero a função comunicativa e salvadora do poema. Recurso salvador que ajuda o poeta para superar o abismo (poesia não é apenas a beleza, é resistência ao medo), um abismo que enche o poeta de dor e de medo e ao conseguir traduzir em palavras, o afasta da escuridão e do silêncio desabafado. Função comunicativa mostrada ao partilhar o poema e tornar cúmplices para os outros que tentam representar o que racionalmente foi visto como inacessível, incompreensível, inaceitável… O próprio Leopoldo Mª Panero assassinou simbolicamente, em mais de cem poemas, sua mãe, comunicando a dor e a solidão que a sua imagem lhe causou. Todos nós exorcizamos, através da palavra que buscamos perfeita, a realidade que nos ataca e nos pode destruir. Todos podemos sobreviver graças ao poema como se fosse um soro que é injetado em nosso sangue para aceitar a vida, para tentar compreender ou pelo menos combatê-la. Todos nós precisamos de beleza, de magia, de possibilidade de transmutação do horror para nos reconhecer vivos e reais neste mundo que poderia desfigurar qualquer existência vindo através da palavra a verdadeira medida das coisas: esse é o poder do verso.
Todos esperamos
que la palabra se haga carne que
cubra los huesos que la injusta derrota provoca.
(Fragmento de De tierra con nosotros, Montserrat Villar)
Ou, nas palavras de Luís Serguilha,
A arte faz (com) que a vida seja suportável. Com a arte procuramos o infinito em cada perspectiva (mónada intensiva).
Yves Bonnefoy diz que “a poesia não significa, mostra […], não joga o jogo da significação, pelo contrário, nega-o; a sua razão de ser é ir além das representações, análises, fórmulas, – além de todos os discursos, de todo o conhecimento que vai para o imediato de ser sensível que os conceitos nos tiram”1. E, mais na frente, “não se esqueça que a necessidade de poesia, entre aqueles que a escrevem, é também a preocupação com uma verdade compartilhada”, uma verdade que vai além do meramente intelectual e que, de modo algum, poderia ser explicada racionalmente. A verdade do artista, do poeta é a verdade de sua alma, de seu espírito. Um espírito que precisa olhar para além do significado utilitário das coisas, além do conhecimento racional… usando sensibilidade, intuição e conhecimento de si mesmo para exprimir sua necessidade interior. Como observa Wassily Kamdinsky2, nesta expressão, “a medida e o equilíbrio não estão fora, mas dentro do artista […]” e, eu acrescento, só assim podemos tentar manifestar o inefável.
Juan Ramón Jiménez, num de seus poemas pertencentes à sua poesia pura, descreve aquele momento em que o sol se põe atrás das montanhas: beleza intangível e inalcançável; beleza instantânea que é impossível parar em seu desaparecimento, mas criação poética por fim, tão pura e eterna como é o poema que a descreve:
Poema do livro De Poesía, 1923, que fala do ideal de pureza, tanto na vida quanto na poesia:.
¡Ésta es mi vida, la de arriba,
la de la pura brisa,
la del pájaro último,
la de las cimas de oro de lo oscuro!
¡Ésta es mi libertad, oler a rosa,
cortar el agua fría con mi mano loca,
desnudar la arboleda,
cogerle al sol su luz eterna..

Partilhar a palavra e transformá-la em poesia
E o poeta, pelo único meio que conhece – a palavra -, tenta dar sentido e descrever a essência das coisas, a essência do sentimento em cada olhar, em cada movimento de respiração, em cada momento da vida, na única expressão sincera de liberdade. E o poema tenta, aqui e agora, manter esse momento que se escapa de nossas mãos porque ele tem a origem na sensibilidade e não pode apreender e manter da maneira como os objetos se mantêm.
Regressamos a Platão, e agora subimos para a luz; para as sombras que na caverna foram refletidas e percebidas de forma sensível sem materialidade, sem consistência, fruto do momento em que a luz as reflete no espaço, intangíveis. Nós ascendemos ao mundo dos objetos, dos corpos, da realidade… e nosso cérebro começa a racionalizar e ordenar essa realidade em elementos tangíveis, mensuráveis, contáveis e fisicamente definíveis, isso é tudo e isso não é nada. O que nos resta? O que nos move além da pura racionalidade? Precisamente a necessidade de encontrar um sentido raramente racional e razoável para o mundo que nos rodeia. O poeta pergunta-se sobre esse significado além da corporeidade pura, sobre a sua própria perceção desse mundo, ele questiona as verdades recebidas e consolidadas que começam pela experiência dos outros. E busca seu próprio conhecimento empírico, sua própria verdade. Uma verdade intangível, inefável, mas uma verdade honesta, que faz parte do seu eu mais profundo para se comunicar com os outros nesse aqui e agora. Mas, como é difícil se comunicar às vezes? Que falta, muitas vezes, de capacidade expressiva na própria expressão? Quanto é preciso procurar entre as próprias palavras para transmitir o instante em que o conhecimento exato foi percebido. E elas torcem, esticam, violam a sintaxe, o léxico, as colocações morfológicas da linguagem natural para chegar a exteriorizar o inefável. E alcança-se assim a beleza última do sol e a tentativa de sobreviver-se além de uma realidade que nem sempre significa existência.
É, então, que se partilha o sentido último de estar aqui e agora e tudo o que nos arranha, nos fere, nos emociona, nos perturba. O poema deve nascer desse Eu eternamente em busca de significado e deve beber de dentro das entranhas para entrar nas entranhas dos outros que, no poema, vão encontrar o seu próprio caminho.
Caminhar sem descanso através do poema
E é quando nos perguntamos: conseguimos transmitir a essência de nossa existência, nosso aqui e agora que precisamos? Apenas na palavra poética, na experiência e relacionamento com a nossa verdade mais honesta, com o nosso eu mais profundo, nós temos a resposta. Cada poeta busca a sua verdade e sente uma necessidade diferente ao escrever: criar beleza, criar conteúdo, combinar ética e estética, acordar e enfrentar seus próprios fantasmas, provocar com a convulsão das entranhas uma mudança sísmica no outro para fazer com que este se pergunte pela realidade de maneira diferente, a partir de outra perspetiva. Se formos fiéis à nossa pesquisa, podemos, apesar das limitações da linguagem, ficar perto da tradução do intangível e superar a finidade que todos sentimos obsessivamente. Precisamos sair da caverna, conhecer o mundo, reconhecendo o seu limite temporal, encontrar o sentido e superar o medo de que o nada nos vai cobrir a todos. A palavra poética salva-nos, leva-nos além das nossas fronteiras expressivas e vitais, junta-nos a outros que, como nós, vivem numa contínua busca de significado. Talvez nunca encontremos o sentido último da nossa existência, mas o caminho, a pesquisa, o exercício incansável, a necessidade e sua expressão salva-nos do abismo. É possível que esse seja o assunto e nada mais que esse: caminhar sem descanso através do poema.
Imagens: 0) Poema, de Montserrat Villar González (detalhe), 1) Montserrat Villar González
1 BONNEFOY, Yves. La traducción de la poesía, Valencia, Editorial Pre-textos, 2002 (Traducción y prólogo de Arturo Carrera), Pg. 25
2 KANDINSKY; Wassily. De lo espiritual en el arte, México, Premia Editora de libros S.A., 1979. (Traducción de Elisabeth Palma), Pg. 63.