De cada vez que leio Valter Hugo Mãe percebo que estou a entrar num mundo muito próprio, em que a língua se transfigura e em que as personagens têm de ser lidas para além da capa exterior que as cobre, como é o caso em “Homens Imprudentemente Poéticos”.
Comecei com o Sr. Silva e os companheiros de fim de vida no lar Feliz Idade em “a máquina de fazer espanhóis”(2010); seguiu-se Halla nos fiordes da Islândia, a sobreviver à morte da irmã gémea em “A Desumanização”(2013) e depois, o mais perturbador de todos, “o remorso de baltazar serapião” (2006) que lhe valeu o prémio José Saramago e que o Nobel classificou de “tsunami”.
Depois de algum tempo sem ler nenhum romance deste autor – para além das crónicas com o título Autobiografia Imaginária no JL – e porque já três novos livros de Valter Hugo Mãe se amontoavam na pilha dos “a ler/oferecidos”, foi a vez deste “Homens Imprudentemente Poéticos”.
E quem são estes phomens imprudentemente poéticos, afinal?
Dois vizinhos num Japão antigo, o artesão Itaro e o oleiro Saburo, que criam uma inimizade incompreensível, como tantas vezes acontece. O artesão na arte de fazer leques é um homem obstinado, obcecado em fazer premonições sobre acontecimentos futuros, a partir da morte de animais/insectos. O oleiro, também ele um homem obstinado, pensando que conseguia salvar a mulher da morte que lhe havia sido profetizada por Itaro, faz crescer o jardim pela floresta adentro. Além destes dois homens que são afinal as personagens principais do romance, as figuras femininas são Matsu “que faz parte das pessoas diferentes” (pág. 47) é a irmã cega de Itaro, cuidada pela criada Kame. A senhora Kame, que tinha sido acolhida pela família do artesão, é a pessoa cuidadora, protectora, que está sempre presente em função dos outros “era um bicho domesticado. Viam-na com o carinho que se dava aos gatos enamorados por seus donos”.(pág. 38). E por fim, a senhora Fuyu, a mulher do oleiro Saburo, cuja presença ele teima em manter mesmo depois de morta, usando o seu quimono como espantalho nos canaviais, para afugentar os pássaros e, se possível, para a fazer voltar.
Um livro muito visual
Como acontece com todos os livros de Valter Hugo Mãe, este é também muito visual. A floresta, lugar mágico povoado de bichos onde os suicidas procuram a sua morada derradeira, as violetas, as cerejeiras em flor, as flores do jardim, o lago Biwa e os seus peixes e, especialmente, o poço. A cena do poço no fundo do qual Itaro vai permanecer “sete sóis e sete luas” vai ser um lugar de descoberta, onde experiencia a mais profunda escuridão igual à cegueira da irmã e onde vence na luta contra o medo. É um dos capítulos mais intensos, assim como os três capítulos sobre a irmã Matsu que constituem a terceira parte do romance e que são duma enorme beleza poética.
Conhecer um pouco do livro Homens Imprudentemente Poéticos
Termino com alguns excertos para mim muito significativos de “Homens Imprudentemente Poéticos”, deste livro de Valer Hugo Mãe, um escritor que é também editor e artista plástico:
“Contar-se-ia para sempre que um homem fora condenado a meditar no fundo de um poço durante sete sóis e sete luas e que, apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho.” (pág. 165)
“… o artesão cerrou os olhos, ainda mal acostumado à abundância da luz, e sentiu-se confortável no escuro. Educara-se para o escuro. De verdade, sentiu nenhum medo da cegueira. Considerou que ficar sem ver era da ordem da limpeza. E o sábio disse: inclui-te naqueles que frequentam a universalidade.” (pág. 166)
“Ela sabia apenas da beleza das palavras porque era com elas que se explicava o mundo.” (pág. 174)
“A cega, mais do que nunca, entendia o que era conhecer alguém e começava a dizer: conheço-te. Era a maneira mais exacta que tinha de afirmar que o via.” (pág. 177)
“Obstinado com pintar um novo leque, na expectativa do que lhe mostraria, tanto quanto outrora ansiava por saber o que veria no morto de algum bicho.” (pág. 183)
“Contava-se que saíra do poço tão imprudente quanto mágico.” (pág. 184)
“E Itaro pintava, demorava-se absurdamente a ver cada leque, e subitamente regressava à necessidade de pintar. Era inesgotável. Ele dizia. Que o deslumbre nunca se eternizava.” (pág. 184)
“… sei pouco, sei que há algo mais para saber. Pressentia que a arte era uma revelação, assentava numa suspeita mas nunca garantiria que resultado teria, afinal. Estava diante de um pressentimento de haver algo para descobrir mas faltava-lhe conhecer o quê. Apenas os leques, leque a leque, o levariam utopicamente mais além”. (pág. 185)
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