Em Maio de 1971, três mulheres decidiram fazer um livro a seis mãos: Novas Cartas Portuguesas. Por essa altura, uma delas – Maria Teresa Horta – cobardemente agredida pela PIDE por causa do seu censurado livro Minha Senhora de Mim, reagiu assim quando se encontrou no dia seguinte para almoçar com as amigas Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa: “Uma mulher apanha uma tareia porque escreve um livro? O que é que eles fariam se fôssemos três a escrever um livro?”.
Foi assim que começou essa maravilhosa aventura que foi a escrita de Novas Cartas Portuguesas há precisamente 51 anos. Nove meses depois, tal como um parto, era publicado por Natália Correia, a única editora que teve a coragem de o publicar na íntegra. Três dias depois, a 1ª edição era recolhida e destruída pela censura, por conter “passagens francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País”, nas palavras do censor.
Seguiu-se o chamado ‘processo das Três Marias’. Interrogadas separadamente pela PIDE-DGS na tentativa de saber quem tinha escrito o quê, o pacto de silêncio das Três Marias nunca foi quebrado. Aqueles 120 textos retratavam a sociedade portuguesa, a guerra colonial, a opressão das mulheres, a violência, a emigração, a pobreza, os espartilhos da família tradicional católica. Era um libelo contra a ideologia retrógrada, opressiva e castradora do antes do 25 de Abril. Aqueles textos que constituíam as Novas Cartas Portuguesas queriam estilhaçar a ditadura e iam ao cerne da opressão e ao estatuto das mulheres. Constituíam uma unidade na diversidade e as suas autoras eram responsáveis pelo todo, não se deixando intimidar por um regime no seu estertor. Se em Portugal só uma elite intelectual e mais esclarecida sabia do que se passava, fora de Portugal o impacto foi enorme: feministas movimentaram-se, houve manifestações junto às embaixadas de Portugal em várias cidades do mundo, a comunicação social mais influente de todo o mundo acompanhou o processo e em Junho de 1973, na Conferência da National Organization for Women, o ‘processo das Três Marias’ foi votado como a primeira causa feminista internacional. A solidariedade feminista, para a qual o contributo de Simone de Beauvoir foi determinante, não deixou isolar as três escritoras e a sua obra teve um papel muito relevante no despertar das ideias feministas e emancipatórias depois do 25 de Abril de 1974 em Portugal.
Maria De Lourdes Pintasilgo, a única mulher a desempenhar o cargo de primeiro-ministro em Portugal e que chegou a ser formalmente candidata à Presidência da República, num artigo de opinião na revista Visão, por ocasião do 8 de Março, chamou-lhe ‘O livro esquecido’. “Além de uma obra literária invulgar, as Novas Cartas Portuguesas foram um acontecimento único.”
3 Marias, marca indelével na literatura e na história dos feminismos
Não deixemos esquecer este livro, uma escrita de mulheres, de liberdade, que ajudou Portugal a quebrar as duras correntes do conservadorismo, um marco de resistência e de liberdade num país atrasado e oprimido.
Das três Marias, Maria Teresa Horta, que neste mês de Maio assinalou mais um aniversário, é a única que ainda vive e continua a surpreender-nos com a sua poesia e escrita marcadamente feminista, tendo no ano transacto o seu livro Estranhezas recebido o Prémio Literário Casino da Póvoa, no festival literário Correntes d’Escritas. Maria Velho da Costa faleceu em Maio de 2020 e Maria Isabel Barreno em 2016.
Serão sempre as 3 Marias. Deixaram uma marca indelével na literatura e na história dos feminismos.
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Imagens: 0) Almerinda Bento; 1) NCP
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‘Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica’ de Natália Correia reeditada pela Ponto de Fuga