Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

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Em Maio de 1971, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa decidiram, em Lisboa, iniciar um projecto literário que culminaria, em 1972, na publicação de Novas Cartas Portuguesas. Para o levarem a cabo, partiram de Lettres Portugaises, um romance publicado por Claude Barbin em 1669. Publicada anonimamente, a obra teve uma repercussão que se fez ainda sentir ao longo dos séculos seguintes.

Quando, em 1972, veio a público a primeira edição de Novas Cartas Portuguesas, as autoras levavam já na bagagem obras que desafiavam o status quo do Estado Novo: com Maina Mendes (1969), Maria Velho da Costa iniciava o seu caminho de transgressão das convenções sociais, denunciando uma sociedade patriarcal; com Os Outros Legítimos Superiores (1970), Maria Isabel Barreno denunciava o silêncio simbólico sob o qual viviam as mulheres; com Minha Senhora de Mim (1971), Maria Teresa Horta reivindicava peremptoriamente o direito à sexualidade feminina.

Esta primeira edição de Novas Cartas Portuguesas, da Estúdios Cor, contou com a direcção literária de Natália Correia, que, instada a cortar partes, publicou a obra integralmente. Esta versão sem cortes viria, assim, a público e seria recolhida e destruída três dias após a sua publicação pela censura do regime ditatorial em vigor. O processo judicial que se seguiu a esta publicação – que revelava que a censura de Marcelo Caetano não divergia muito da de Salazar –, e de acordo com o qual a obra era pornográfica e atentatória da moral pública, levou as autoras a interrogatórios da PIDE/DGS separadamente. A obra, escrita a seis mãos, desafiava as noções de autoria, uma vez que não se sabia quem tinha escrito cada fragmento textual. Assim, nos interrogatórios, tentou saber-se quem tinha escrito o quê, embora as autoras – até hoje – nunca o tenham revelado. O julgamento começou a 25 de Outubro de 1973 e só não teve lugar, após alguns adiamentos, por se ter dado o 25 de Abril.

O livro teve uma uma recepção internacional ímpar: motivou, na 1ª Conferência Feminista Internacional (Cambridge, Junho de 1973), e de acordo com Manuela Tavares, a primeira acção feminista internacional, passou por traduções rápidas em vários países ocidentais, tendo uma enorme repercussão junto de figuras ligadas ao movimento feminista, como Doris Lessing, Jean-Paul Sartre, Marguerite Duras, Simone de Beauvoir e Christiane Rochefort. Aliás, as autoras contrabandearam o livro para França, endereçando-o aos editores destas três últimas. As “três Marias”, como viriam a ficar conhecidas internacionalmente, viram, assim, a sua obra tornar-se num caso mediático.

O parecer da PIDE, que consta do relatório nº 9462 dos processos de livros censurados, homologado em 26 de Maio de 1972, apontava partes consideradas particularmente imorais:

Este livro é constituído por uma série de textos em prosa e versos ligados à história de Mariana, mas em que se preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspectos, através de histórias e reflexões.

Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (v.g. pp. 48, 88, 98, 102, 122, 140, 164, 188, 214, 216, 246, 284, 316 e 318), constituindo uma ofensa aos costumes e a moral vigente no País.

Concluindo: Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime‘.

Chamadas à esquadra, as três autoras só não foram imediatamente presas porque Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa pagaram uma caução de quinze contos. Maria Isabel Barreno, por sua vez, provou que não tinha posses para isso e, em contrapartida, teve de comparecer uma vez por mês na polícia, para ofício de corpo presente. Posteriormente, David Mourão-Ferreira emprestou-lhe o valor para que também ela pudesse pagar a caução.

No dia 23 de Junho de 1972, foi feito um auto de busca e foram apreendidos os exemplares da obra. Posteriormente, as autoras, tal foi a onda de apoio que tiveram, foram contactadas por Rui Patrício, Ministro dos Negócios Estrangeiros, no sentido de declararem publicamente que, através do livro, não tinham querido ofender nem o Governo nem o nome de Portugal.

Caso o fizessem, o processo por crime de abuso de liberdade de imprensa seria retirado. A proposta foi rejeitada pelas três. J. Marcelo Caetano, no programa de televisão “Conversas de Família”, foi mais agressivo do que Patrício, dizendo que as autoras ajudavam os inimigos do país e eram indignas de serem portuguesas. Moreira Baptista, por sua vez, pressionava Queiroz Pereira, Manuel José Homem de Mello e Rodolfo Iriarte, dono, director e chefe de redação de A Capital, respectivamente, para que despedissem Maria Teresa Horta. Ainda que não tenha cumprido o objectivo, uma vez que David Mourão-Ferreira disse que, caso o fizessem, se recusaria a receber o prémio de poesia que lhe fora oficialmente atribuído nesse ano, fazendo constar as razões do protesto, a autora deixou de poder assinar qualquer artigo. Entretanto, Maria Teresa Horta recebia telefonemas anónimos, com ameaças, tanto em casa quanto na redação do jornal.

Em Portugal, chegou a haver a proibição de informações em relação a este caso via imprensa escrita ou falada. Assim, os nomes das autoras não podiam aparecer em veículos de comunicação social, sob a ameaça de serem fechados. A pressão acabou por surtir o efeito contrário e o caso teve várias repercussões na Europa, o que incluiu uma ocupação de mulheres na Embaixada Portuguesa da Holanda, manifestações de repúdio em Washington e várias manifestações em Paris, com figuras como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras ou Jean-Paul Sartre.

Conclusões

Novas Cartas Portuguesas tinha imbuída já na sua proposta de génese uma proposta de desafio aos ditames do Estado Novo. Censurada três dias após a sua publicação, a obra, para além de denunciar e combater um sistema social que se baseava em formas sociais de patriarcado, fazia referências críticas a temas que eram tabus, como a guerra colonial. Devido à rápida acção da censura, o livro acabou por ter uma repercussão limitada antes da queda da ditadura. Depois do 25 de Abril, com tantas mudanças na sociedade portuguesa, acabou por não ser muito lido e por não estar no centro das atenções (teve um número relativamente reduzido de edições), e isto apesar do sucesso que teve a nível internacional, especialmente no seio de movimentos feministas.

No plano da luta contra o patriarcado e da sua denúncia, as autoras escancararam a inferioridade social da mulher numa sociedade em que se enraizava uma noção de família e de nação que dava aos homens o espaço público – político, portanto – e que confinava as mulheres ao espaço doméstico, impedindo-as de decidirem sobre a polis e afastando-as do acesso à produção simbólica. Para o fazerem, mostraram as relações entre homens e mulheres em todos os aspectos, desde a instituição social aos comportamentos sexuais.

Através das palavras em discurso literário, tornando a realidade em componente da estrutura literária, as autoras expuseram o seu inconformismo, formulando a proposta de um outro mundo, e criaram um discurso que incomodou o poder instituído, que teve a necessidade de tentar calá-las e de considerar a sua obra “pornográfica”, desatentando no seu conteúdo real, difamando-as. Assim, o processo estético que norteou a escrita das três Marias seria inserido na cadeia que inclui a interpretação – e que, logo após a publicação da obra, terminou em censura e, imediatamente a seguir, motivou um caso ímpar de mobilização internacional em torno de uma causa feminista.

A recepção, seja a nível nacional ou internacional, desempenhou um papel relevante na forma como a obra passou a ser vista, já que motivou a criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres, em que participaram Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno.

A importância de Novas Cartas Portuguesas não é tão literária quanto política, uma vez que vale essencialmente pelo ataque que constituiu ao poder instituído. Tendo em conta o lugar único que ocupa nos movimentos feministas ocorridos em Portugal durante o século XX, ao olharmos para ela, importa-nos principalmente o contexto em que foi produzida, porque foi ele que permitiu que se estabelecesse a relação dialógica autoras-trabalho-público a que aqui fazemos referência e que se resgatasse a recepção enquanto experiência.

Obs: Este artigo foi previamente publicado em Esquerda.net tendo sofrido ligeiras adequações gráficas na presente edição.

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Categorias: Cultura, Literatura

Acerca do Autor

Ana Bárbara Pedrosa

Ana Bárbara Pedrosa nasceu em Vizela, em 1990. Licenciada em Línguas Aplicadas, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduada em Linguística, doutorada em Ciências Humanas, pós-graduada em Economia e Políticas Públicas, é editora do Esquerda.net, linguista na Moravia/Google, tradutora/revisora freelancer, investigadora científica em Literatura.

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