Todo ele trágico, o século XX abriu a possibilidade à atitude do cínico na esfera pública, ao somarem-se manifestações de tipologia diversa contra a rotina impensada da vida, contra as convenções e práticas sociais. Nenhum espaço ou papel é sagrado. À semelhança daquele episódio de Diógenes que confronta Platão acerca da definição do que é um homem (“um bípede sem penas”), as tentativas mais ou menos legítimas de definição carecem sucessivamente de novas desconstruções; é preciso ‘depenar’ as heranças que o trágico século nos legou.
Nisto, a atitude do neocínico, na sua afronta à sociedade, no seu diálogo com o comportamento corporal e com o seu próprio corpo, abriu caminhos para a desconstrução da ideia de género – em parte, com vista a uma prática da diferença. O acentuar da diferença tendente a uma igualdade exige obrigatoriamente o desrespeito pelo trágico, o qual possui no seu epicentro a masculinidade, a força triunfal, a luta, a coragem, a contingência e, consequentemente, a humildade. Nisto, os artistas deram um elevado contributo, não só nas artes performativas, como plásticas. Consequentemente, não tardou quem conceptualizasse essas fabricações de género com vista ao estabelecimento de teorias, as quais, nem sempre, servem a vida tal qual ela é.
Este neocinismo que reflecte sobre o ‘humano com penas’ e que procura algum reparo para defesa do seu corpo, possui no entanto, algo de distinto em relação a tudo quanto nos foi culturalmente legado: não só prescinde da utopia, como coloca na mesa de reflexão questões relacionadas com a Lei, o velho Direito de fonte romana e a análise do conceito de ‘uso’. Para que serve o que se possui? Qual o uso que posso dar ao meu corpo que é minha propriedade exclusiva e que pensa sentindo?
Nesta tomada de posse de um corpo próprio que ao longo de séculos esteve alienado a religiões e à economia de produção, impõe-se um lugar para esse corpo, um território de exploração, uma cartografia da pessoalidade, da nova persona.
Para este novo território exige-se a morte. A morte sacraliza. Mas para haver morte, tem que haver visibilidade. Aqui, um rio impõe duas margens: homem de um lado e mulher do outro, ambos com todas as fabricações engendradas até hoje sobre o género. É um rio, porém, que tem vindo a estreitar-se.
Na invisibilidade, não há morte. O espaço público ao longo de séculos negou o território do feminismo, que foi-se mantendo e transformando, mais ou menos à margem. O que não existe, não morre: o mesmo se aplica ao contrário. E este contrário criou a sua própria contradição.
O espaço público, território do trágico, da guerra, do poder, não serve já a uma outra masculinidade que rejeita o que a esfera pública lhe oferece, restando-lhe aquela margem que lhe pareceu ocupada também por séculos não pela feminilidade, mas pela mulher, com influência maior ou menor do feminismo. É que a feminilidade é igualmente do âmbito da esfera pública e a margem do fêmeo pode confundir-se, mas não é da mesma natureza (a História permitiu a visibilidade de mulheres especialmente naquilo que elas pareceram ser como homens; veja-se George Sand e até mesmo a infeliz Olympe de Gouges). A feminilidade é uma variação do masculino para proveito deste, sem violência, com louvor e total controlo; alimenta inúmeras indústrias e constrói alguns dos mais poderosos sonhos do quotidiano.
O homem que não quer a guerra, que repudia o poder, que não se identifica com a visibilidade que os media ampliam, direccionam para a ‘outra margem’ o lugar para o seu corpo (note-se que o travesti serviu sempre bem o masculino, independentemente das orientações sexuais, e talvez por isso, a sua evanescência para territórios artísticos politicamente mais marcantes – logo, não será pelo postiço que a nova masculinidade firmará o seu novo território). É um lugar que se traduz por um novo mapeamento no espaço doméstico, um espaço invisível que consubstancia uma participação afectuosa na educação dos filhos; e as mulheres, aos poucos, ocupam os lugares outrora da exclusividade dos homens, adoptando ou não os seus comportamentos tendencialmente trágicos. Mas antes de um lugar para o corpo, exige-se a definição do corpo e a aceitação do mesmo pela Lei.
Sanar a tragicidade dos papéis sociais – não com a afronta, a contestação e a utopia – não implica a assunção do que apelidamos de natural, porque aí defenderíamos, por oposição, o sagrado e renegaríamos o papel fundamental da arte. A humanidade parece só adorar tudo e todos aqueles que a fizeram perecer. Mas o tal rio que se estreita tem por nome afecto, sendo este conceito a conquista mais visível da nova masculinidade. Já não se trata do admirável, do sedutor, do apaixonado, mas do afectuoso. O neocínico é da natureza do afectuoso.
A nova masculinidade pensa contra si mesma e permite depurar-se com um certo brio, um certo orgulho pelo aniquilamento, cansada que está de tropeçar em si mesma e deixar por memória um oceano de sangue por onde navega sempre o poder.
A masculinidade trágica cumpre assim a função da caveira na meditação do monge. A esfera da invisibilidade oferece-lhe então a possibilidade de se escapar da possessão do desejo e da tirania do instinto de conservação, extenuada que está das mil tarefas que a decompõem: pelo dinamismo de decomposição firma a sua própria renovação. A nova masculinidade perpetua sob um novo formato a sua energia destruidora.
Não sabemos, porém, qual o peso do feminismo sobre esta nova masculinidade ou se será, simplesmente apenas, a continuidade do seu diálogo da destruição consigo própria – o que é perfeitamente cabal no âmbito de um neocinismo. De qualquer modo, esta nova masculinidade terá ainda que continuar a lutar contra a velha masculinidade trágica que parece, afinal, cada vez mais desperta na sua fúria contra o estrangeiro, contra a mulher, contra o homossexual e outras “fraquezas” sociais.
Se pensarmos bem, a “masculinidade” até é uma palavra feminina.
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Imagens: Peter Hujar
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