Não é preciso muito para acordar ao avesso. Nós e os outros. Ainda de olhos entreabertos, a lutarmos contra o entorpecimento do corpo, numa manhã primaveril como outra qualquer.
Pelo menos, considerávamo-la como tal.
Março de 2020 marca o momento em que o planeta pressionou os freios a fundo e fez com que os diversos países estacassem economias, direitos, liberdades e garantias que a Democracia moderna – pese embora os seus múltiplos pecados –, conseguiu, a balas e, por vezes, a cravos, assegurar à existência digna de cada um. Com uma fugacidade inacreditável, o foco febril que os ventos do Oriente traziam às estampas, físicas e digitais, passou a epidemia para, tão rápido quanto um piscar de olhos, tornar-se verdadeiramente na primeira pandemia desde a Gripe Espanhola. Vivemos uma clausura pelo bem comum, que se estendeu até meados do presente ano, dando primazia à presença distante, ao teletrabalho, às videochamadas em família, aos cafés virtuais com amigos, guardando na memória como outrora havia sido e como queríamos – e tanto queremos – que volte a ser.
Certezas e incertezas
Os dias atuais são de incerteza. Não apenas sobre uma potencial panaceia universal em veste de vacina, mas também, curiosamente, sobre os limites, as balizas atribuídas aos poderes governativos do órgão executivo do Estado. O Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, anunciara, há um par de dias, a indispensabilidade da adoção de medidas adicionais e restritivas de estancamento do recrescimento dos índices pandémicos de contágio (Resolução do Conselho de Ministros de 14.10.2020). Entre elas, sublinham-se, como mais sensíveis, a potencial obrigatoriedade de utilização da aplicação eletrónica STAYAWAY COVID e a provável imposição de máscara na circulação pedestre, mesmo em espaços ao ar livre, onde se verifique uma proliferação considerável de pessoas.
Centremo-nos nelas.
Enquanto medida (temporária) de mitigação de riscos sanitários, os méritos de uma decisão governativa que privilegia a proteção individual – e, indiretamente, alheia (!) – através do uso generalizado de máscara em qualquer circunstância em que, no espaço público, não se perspetive a possibilidade de circulação desejavelmente distanciada, estará, com certeza, na fronteira da inegabilidade. Pelo menos, apelando às raízes do bom senso, pelo que – perdoar-me-ão os que observam outro espectro da mesma realidade –, não exigirá detida discussão. Todavia, já no que concerne o descarregamento e utilização obrigatórios da referida App… as dúvidas ressaltam até a olhos desatentos.
‘Não existirá futuro sem a essência da nossa liberdade, sem a devida observação e respeito por parte do Estado’
Qualquer instrumento legislativo nacional, Lei ou Decreto-Lei, na sua força e abrangência aplicativa, cede perante a primordialidade dos postulados constitucionais. Sabemo-lo bem. Por outra banda, não menos veraz é a premissa segundo a qual os direitos, liberdades e garantias, de aplicação universal e (tendencialmente) inamovível, em situações absolutamente excecionais, podem sofrer entorses que os limitem. Ora, deve, este racional, claro está, encontrar soluções temperadas entre textos legais e realidades prevalentes. Quer-se, com isto, dizer que a legitimidade da ação governativa para “orientar” o uso impositivo da aplicação móvel citada é tanto mais duvidosa quanto a urgência por clarificação acerca da colisão de direitos fundamentos lato sensu. Visto à lupa, pretende dizer-se que não pode ser aceitável uma lógica de gestão governamental atual da pandemia que não olhe a meios para atingir fins, que avance em frente sem ver se há, de facto, atropelos à Lei Fundamental. O estado de calamidade – previsto na Lei de Bases da Proteção Civil, n.º 27/2006, 03 de julho, atualizada pela Lei n.º 80/2015, de 03/08 –, não pode servir de salvo-conduto para fazer tábua rasa de normas orientadoras do Estado de Direito Democrático. Parece-me que a maior preocupação a ter em linha de conta reside a montante.
Vejamos.
Que tipo de “atuação” tornaria o combate das (e pelas) nossas vidas mais eficiente? A utilização de um dispositivo eletrónico cujo funcionamento depende da ligação à Internet, depois de conectar o sistema bluetooth e depois, ainda, de colocar eventuais dados sobre sintomas que o utilizador padeça (?); ou, inversamente, o reforço, real e efetivo, da coordenação entre os hospitais de referência-Ministério da Saúde-Direção Geral da Saúde, da maximização das unidades de saúde locais, da valorização dos profissionais de saúde que se digladiam, há meses, com um inimigo invisível e que se revezam, uma, outra, e outra, e sempre, com a sensação de questão há muito abandonados (?!?!). Arriscaria a dizer que a resposta é intuitiva.
Numa palavra – o fortalecimento do sistema de saúde vai ser sempre mais importante que qualquer capricho tecnológico. Mas não sei se veremos esse dia chegar. Sempre achei, até pelo lastro de literatura ficcional existente, que os Estados não poderiam utilizar as guerras, tangíveis e intangíveis, como argumentário justificativo de restrições autocráticas. Sempre achei que a Polícia, aquela que, além, funcionava como castradora do pensamento e da ação, não poderia dispor da nossa propriedade e fazer dispersar.
Haverá futuro sem COVID-19, decerto que sim. Mas não existirá futuro sem a essência da nossa liberdade, sem a devida observação e respeito por parte do Estado. Nunca.
Pioneirismo do Padre Manuel Himalaya em destaque na National Geographic
Imagem: Claudio Schwarz
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