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A investigação que levei a cabo nos últimos anos debruçou-se sobre a forma como o discurso político – a linguagem, as palavras – foi usado pelo governo em funções durante o período troika com o objetivo de criar aceitação para as medidas que se pretendiam adotar. Essa investigação levou-me a identificar um conjunto de estratégias discursivas, que foram usadas para criar na cabeça dos portugueses a ideia de que medidas ideológicas e políticas, como o corte de salários, a implementação de sobretaxas ou a subida de impostos, eram inevitáveis e moralmente justas.
Essas estratégias foram sendo reconhecidas por autores sensíveis ao uso do discurso pelo poder político ao longo do século XX – e talvez a mais conhecida de todas seja a criação da figura do inimigo-público, a quem possamos, num estilo orwelliano dos dois minutos de ódio (cf. George Orwell, 1984), direcionar as nossas frustrações e identificar como a origem de todos os males. No caso do período-troika, o lugar de inimigo-público foi ocupado por funcionários públicos e pensionistas, acusados de todas as tropelias e indignidades e responsáveis por terem conduzido o país à situação de falência.
Contudo, não foi necessário que decorresse muito tempo para que pudesse apreciar o mesmo uso da linguagem pelo atual governo do PS, suportado pela esquerda parlamentar – uso de que me apercebi com particular facilidade em virtude de ter vivido de muito perto a matéria a que se referia, tornando-me mais capaz de o avaliar. Refiro-me ao uso da linguagem para legitimar uma visão ideológica para a educação, e que recorreu às mesmas estratégias que o governo anterior havia usado para implementar as suas políticas. São essas estratégias que tentarei apresentar de seguida.
Mas importa começar por notar que o caminho que proponho não pretende discutir a posição ideológica ou política em si: afinal, uma ideologia é um conjunto de ideias a partir das quais vemos o mundo e que, funcionando como um bloco, não cedem perante uma argumentação que parta de uma ideologia concorrente. Da mesma forma que não valia a pena discutir a redução das despesas do estado em diversos setores públicos com quem, como acontecia no governo do período-troika, acredita que o estado deve assumir isso mesmo: uma dimensão mais reduzida.
O que pretendo, antes, é invocar a importância de considerarmos amplamente um espírito democrático para lá das nossas ideologias. Esse espírito democrático passará pelo reconhecimento de que 1) as nossas convicções não são universais e há outras possibilidades, igualmente legítimas, de ver o mundo e defender a sua implementação política; 2) o exercício do poder político deve assentar, por isso, num princípio de empatia, de reconhecimento de que a implementação das nossas ideias terá necessariamente um impacto negativo em projetos pessoais tão legítimos como os nossos; 3) nesse sentido, as medidas políticas devem ser feitas a partir do diálogo e da consideração pragmática da sua implementação, pois os que pensam de forma diferente merecem o mesmo respeito dos que partilham a nossa visão do mundo.
Falta de espírito democrático não permite discutir projetos a longo prazo
Foi este espírito democrático que faltou durante o período-troika e foi este espírito democrático que faltou ao atual governo quando lidou com a questão que pretendo aqui abordar: as escolas com contrato de associação. E é isso que tentarei demonstrar, a partir de uma análise discursiva, em cinco pontos:
1) O objetivo político das decisões tomadas foi o de eliminar, ao máximo, a possibilidade de um projeto educativo ser implementado fora da rede estatal. A argumentação usada foi (é sempre?) a questão do dinheiro, mas se esse fosse realmente o critério da decisão, a discussão teria sido: que escolas ficam mais caras ao estado? Mas não: apesar de o discurso oficial ter invocado a questão financeira, o problema nunca foi discutido nesses termos. Isto porque o critério já estava decidido à partida e sem discussão democrática: encerrar as escolas não estatais, independentemente do seu mérito e do seu custo.
2) Este propósito político não seria fácil de implementar: afinal, estas escolas cumpriram um papel importantíssimo no plano educativo do Estado português. Os contratos de associação foram uma política do 25 de abril: como o Estado não podia fazer face às necessidades educativas que se levantavam, celebrou com instituições já existentes (pensemos no Instituto Nun’Álvares) ou com novas cooperativas (caso da Didáxis), contratos que satisfaziam ambas as partes. São milhares os portugueses que só puderam frequentar a escola em resultado destes contratos celebrados por todo o país. E são milhares os famalicenses que devem aos contratos de associação essa hipótese. Não se tratando, à partida, de uma medida popular, tornava-se imperioso adotar uma estratégia discursiva eficaz. E tal foi conseguido aproveitando o enquadramento político anterior e a onda de revolta que o período austeritário tinha levantado contra “os ricos”. Essa estratégia foi a utilização de uma palavra específica, que, como todas as palavras, desperta imediatamente um quadro de conceitos e ideias que nos faz pensar de determinado modo (cf. George Lakoff e a teoria do framing [enquadramento]): refiro-me à palavra “colégios”, que em discurso corrente remete para a ideia de escola para meninos ricos e privilegiados. Não interessava, por isso, que a grande maioria das escolas com contrato de associação se encontrasse em zonas rurais e de baixos rendimentos, como aconteceu em Famalicão. Não interessava que a grande maioria dos alunos que frequentaram essas escolas proviesse de agregados familiares com baixos rendimentos e baixa escolaridade, como aconteceu em Famalicão. Não interessava que cada ex-aluno olhasse para si e percebesse que não era rico nem privilegiado. Invocar a palavra “colégio” despoleta uma moldura de pensamento que nos faz esquecer tudo o resto.
3) E partindo dessa estratégia-primeira, foi possível desenvolver o discurso necessário para implementar uma medida pré-decidida: usando desta palavra, tornou-se possível colocar no mesmo saco todas as escolas não-estatais, mesmo que não sejam para meninos ricos e privilegiados (generalização). Escondendo que estas escolas funcionam nos mesmos termos e com as mesmas regras que todas as escolas estatais, fazem ignorar que elas constituíram sempre ofertas públicas de educação (simplificação). Dizendo que elas são responsáveis por dinheiro mal gasto pelo estado, fazem esquecer o papel que elas cumpriram no nosso projeto coletivo e de todas as funções que cumprem nas comunidades locais (des-historicização).
4) Com a criação deste inimigo público, aproveitando a resposta ao discurso contra os funcionários públicos, os atores políticos suspenderam a capacidade de empatia de uns cidadãos em relação aos outros. Mas se conseguirmos dar um passo atrás e libertarmo-nos desse domínio sobre as nossas cabeças, é-nos fácil identificar o mesmo procedimento: do mesmo modo que o governo anterior usou os funcionários públicos como inimigo-público, este governo usou as escolas. E face a esta estratégia, a única resposta é o esforço de empatia, de nos colocarmos no lugar do outro e pensarmos se não fomos também já vítimas da mesma injustiça ou na possibilidade de, no futuro, o virmos a ser (cf. Martin Niemöller).
5) Portugal (a Europa) tem um debate a fazer sobre educação (assim como sobre segurança social). Isto porque a baixa taxa de natalidade coloca desafios importantes ao futuro das escolas portuguesas. Trata-se de um problema com algumas décadas mas que não tem sido debatido. E dentro deste debate mais geral, poderia ser questionado o porquê de o Estado, nas últimas décadas e já dentro deste paradigma de baixa natalidade, ter decidido construir escolas, duplicando a oferta pública. Mas esse debate não foi feito, e em Portugal sofremos particularmente deste problema: de não querermos discutir projetos a longo prazo e incorporando, nessa discussão, as diferentes vozes que compõem a sociedade portuguesa, e não apenas aquelas que, a cada momento, cada governo quer ouvir.
A mudança é sempre possível
Somos o país do desenrasque e isso na educação é particularmente evidente. Mas parece-me, acima de tudo, uma enorme lacuna democrática: não sabemos debater e quando exercemos o poder fazemo-lo sem empatia. E no caso específico destas escolas, como projetos sociais e comunitários de pessoas concretas que fazem parte da nossa comunidade, era merecido mais respeito e empatia. Ainda assim, a mudança é sempre possível – afinal, como diz a letra de Manuel Reis Sá no hino que ainda corre nas memórias escondidas dos ex-alunos da Didáxis – S.Cosme, “sorri a esperança / pois nós seremos / os arautos da mudança”.
Uma nota final em favor de Paulo Cunha e do Município de Famalicão
PS: A autora deste texto reconhece a postura digna, no que a este assunto diz respeito, do executivo famalicense, na figura do seu presidente, ao ter mantido uma posição de respeito pela história do nosso concelho. É muito fácil, perante uma polémica, enveredar pelo caminho da opinião maioritária, esquecendo antigas convicções. Paulo Cunha não o fez e, respeitando a memória da comunidade famalicense, que foi construída também por estas escolas, honrou o cargo que exerce.
Não há para lá das nossas ideologias, também este é um texto que facilmente denuncia a sua empatia ideológica com as realidades dos contratos de associação.