Quando me preparava para escrever uma crónica de antevisão sobre o próximo jogo do FC Famalicão, frente ao Portimonense, na 13ª ronda da Primeira Liga Portuguesa de Futebol, que se disputará este sábado, 9 dezembro, pelas 15h30, e que a equipa liderada pelo Mister João Pedro Sousa pretende vencer, quando decidi deixá-la de lado e tomar antes a iniciativa de convidar Hélder Duarte, o campeão do Moçambola, para a presente entrevista.
Hélder Duarte é um treinador que conhece o futebol moçambicano como ninguém, ou não fosse campeão nacional de Moçambique (Moçambola), por duas vezes, a última das quais na última temporada – 2022-23 -, agora finalizada, pelo Ferroviário da Beira. Antes tinha sido campeão, em 2020-21, pelo recém-criado clube Black Bulls.
Se Moçambique atravessa enormes dificuldades enquanto país, que se traduzem também em contrariedades para o futebol moçambicano, estes problemas não deixam de ser também um desafio que é ao mesmo tempo uma verdadeira aventura para o Campeonato Moçambicano de Futebol.
A grande maioria dos treinadores gostam de desafios. E Hélder Duarte, mesmo não dispondo de qualquer ‘varinha mágica’, como aliás nenhum outro treinador, tem uma qualidade relevante para os desafios que surgem em países como Moçambique e que atravessam muitas dificuldades – a humanidade. É notória essa humanidade em Hélder Duarte – na sua conversa, na sua postura -, quando fala no futebol moçambicano.
Francisco Oliveira entrevista Hélder Duarte, treinador campeão de Moçambique pelo Ferroviário da Beira e pelo ABB Black Bulls
Francisco Oliveira: Como jovem futebolista, o Hélder Duarte começou no clube da sua terra, o USC Paredes, e também no Vitória de Guimarães. Como começou cedo a perceber a vocação de treinador?
Hélder Duarte: Desde muito novo que decidi ser professor de educação física e estar ligado ao desporto. Quando me apercebi que não ia atingir um nível elevado no futebol jogado, direcionei o meu foco para algo que ainda assim estivesse ligado ao Futebol, desporto de que tanto gostava.
Aliás, abdiquei de jogar ainda junior para ir para a faculdade. E foi logo por essa altura que Fernando Valente me convidou para fazer parte dos quadros técnicos do USC Paredes.
Foi assim que comecei no treino, ainda muito jovem. Com 19 anos treinava os juvenis e aos 22 anos já era adjunto do Fernando Valente, na AD Lousada, antigamente na segunda divisão B).
E foi já como profissional que tomei a decisão de que treinador de futebol seria a minha vida. Com esta decisão, abdiquei da escola pública, onde ainda lecionei por uns tempos.
Francisco Oliveira: Os Black Bulls, em 2014-15, foi a sua primeira e desafiadora experiência em Moçambique. Clube da capital – Maputo -, com uma Academia de Topo, melhor que muitas na Europa, e única em Moçambique. Tratava-se de um projecto de formação. O Hélder Duarte, no recém-criado clube moçambicano, teve um percurso ascendente, que culminou com o clube a ser Campeão do Moçambola em 2020-21.
Num país como Portugal, em que o ‘aparelho político’ tem um papel importante, para oferecer boas condições boas, para a prática e desenvolvimento do futebol e do desporto, em matéria de infra-estruturas, em que medida estas boas condições são condição necessária para se obter o sucesso?
Hélder Duarte: Boas condições de trabalho são essenciais para desenvolver qualquer projecto de formação, ou de natureza desportiva, seja ele de que nível for.
Essa é uma das grandes lacunas em Moçambique. Quase todos os clubes estão associados a empresas do estado e com presidentes ligados a essas empresas; e nem sempre gostam ou têm interesse pelo futebol.
Esses dirigentes usam o clube para se promoverem ou subir nos cargos que desempenham nessas empresas, o que só por si limita o desenvolvimento dos clubes e do futebol moçambicano. Como não estão ligados ao futebol, têm pouco conhecimento de gestão desportiva, o que faz com acabem por se focar unicamente nos resultados e não num processo de desenvolvimento de um projecto.
Costumo dizer que lá, em Moçambique, a pirâmide está invertida. No futebol moçambicano o mais importante é a tribuna (os presidentes), depois os treinadores e só depois os jogadores.
As condições onde treinam ou jogam os atletas para eles não é importante, desde que dê para jogar. Por isso. países com tanto talento não competem ao mais alto nível, em especial quando nos referimos ao nível das seleções.
Francisco Oliveira: Moçambique é a terra natal de Eusébio da Silva Ferreira, que dispensa apresentações. Vi, há uns anos, uma reportagem da ‘constelação de estrelas’ da seleção da Holanda (Seedorf, Edgar Davies, entre outros), que nasceram no Suriname. Depois de lançar Bruno Langa, no Black Bulls, que agora representa o Desportivo de Chaves, e um outro futebolista de que iremos falar mais à frente, pensa que Moçambique é um ‘Coral do Índico’, que o futebol (português, em especial) ainda vai a tempo de aproveitar este potencial?
Hélder Duarte: Costumo dizer que Moçambique é um país inexplorado em muitas áreas, e uma delas é a parte desportiva, em todos os desportos.
Eles atingem até bons resultados com poucas ou nenhumas condições, imagine só se fossem organizados.
Os atletas começam a competir muito tarde, em 90% das províncias, em campos sem condições, mas mesmo assim quando vão para outros contextos e têm tempo de adaptação atingem rapidamente boas performances.
Como o contexto é muito diferente, eles não podem vir de Moçambique para um dos 3 ou 4 grandes, porque a realidade nacional está muitos degraus acima. Já quando vêm para um nível facilitador de integração, eles rapidamente atingem bons níveis, como aconteceu com Mexer, Zainadine Júnior, Reinildo, Langa e, ultimamente, Geny.
Mas há muitos mais; e com excelente qualidade e a baixo custo.
Francisco Oliveira: Como aconteceu o ‘Projecto Black Bulls’?
Hélder Duarte: O projeto Black Bulls apareceu através de um empresário Moçambicano que tem um grande gosto pelo futebol e reconhece a importância que o desporto tem na sociedade, mas também pela vertente social.
Inicialmente estava associado ao clube da sua terra, Chibuto, onde queria criar uma academia de jogadores de futebol para depois os lançar na Europa, a exemplo do que sucedeu com o Cedric, um futebolista que foi de Chibuto para o União da Madeira, quando o clube madeirense estava na I Liga portuguesa, em 2015-16.
Por causa de divergências dentro do clube, esse empresário decidiu criar o seu próprio clube, desde logo criando parcerias com o FC Porto, do qual é um adepto ferrenho.
Foi através dessa parceria que, em 2016, fui, com mais três colegas, a Moçambique selecionar 3 jogadores para os quadros do FCP. Entre eles, estava Geny Catamo.
O projecto arrancou posteriormente, em 2018, tendo contratado treinadores estrangeiros para o iniciar e projetarem uma academia que se igualasse às europeias. Neste momento este é projeto de sonho em Moçambique, para qualquer treinador.
Francisco Oliveira: Geny Catamo foi o melhor futebolista que já treinou? Qual é a sua história com o FC Porto?
Hélder Duarte: Geny Catamo veio pela primeira vez ao FCP em 2016. Nessa altura, esteve em testes e sob observação mais de 15 dias, no âmbito do projecto caça-talentos do clube. Infelizmente, devido à sua tenra idade, não podia ficar.
Em 2018, veio a Portugal num grupo de elite da ABB (Associação Black Bulls) realizar jogos contra o FCP, mormente contra a equipa sub17, onde estava o Francisco Conceição, por exemplo, e os sub19, que nessa época – 2018-19 – venceram a UEFA Youth League.
Mas os clubes não chegaram a acordo e Geny Catamo foi para os juniores do Amora, na altura a disputar a 2° Divisão nacional, Amora que é um clube cuja SAD é detida pelo presidente da ABB.
Francisco Oliveira: Entretanto, regressou a Moçambique onde treinou o Ferroviário da Beira e acabou por confessar que treinou ”um plantel com 32 jogadores, em que não escolheu nenhum”. Pensa que um treinador deve sempre analisar e dar o ‘aval’ para que o seu plantel esteja de acordo com as suas ideias e filosofia de jogo?
Hélder Duarte: Ajuda sempre, quando se vai para um clube, saber que tipo de jogadores vamos encontrar, mas acredito que cada vez mais os clubes é que têm que encontrar treinadores que se adequem ao seu modelo de jogo.
Dou um exemplo disso mesmo. Simeone nunca poderia treinar uma equipa como o Barcelona, porque a sua ideia de jogo não se enquadraria na filosofia do clube.
O contexto, em Moçambique, é diferente. Não há esse planeamento, a não ser na ABB (Black Bulls), que tem um projecto e uma ideia, uma filosofia de jogo, até um sistema táctico enraizado desde a sua criação.
Francisco Oliveira: Após os Black Bulls, seguiu-se o FC Famalicão, como adjunto de Rui Pedro Silva (2021-22 e 2022-23), tendo conseguido a excelente classificação de oitavo lugar no final da época de 2021-22. No FC Famalicão, em 2022-23, tinham as ‘peças’ que queriam?
Hélder Duarte: Não gostaria muito de abordar a minha passagem pelo Famalicão, porque era apenas adjunto do Rui Pedro Silva.
Tenho o máximo de respeito pelo presidente da SAD, Miguel Ribeiro, bem como pelo director desportivo, André Vilas Boas.
Os treinadores querem sempre os melhores jogadores, as direções tentam sempre corresponder com os melhores jogadores disponíveis dentro das possibilidades financeiras de cada clube. Mas nem sempre o talento se constrói, ou nós treinadores não o conseguimos construir.
O FC Famalicão é um grande clube, com uma excelente massa adepta, e eu só estou honrado e agradecido por ter representado o clube.
Gostaríamos de ter tido mais sucesso, mas infelizmente não conseguimos.
Vendo de fora, vejo o clube actualmente mais estável a nível de jogadores, transitando menos de um ano para o outro. O clube tem tudo para, em breve, ser uma referência em Portugal e lutar pelas competições Europeias.
Francisco Oliveira: Foi Campeão Moçambicano, agora mesmo, na presente época 2022-23, pelo Ferroviário da Beira, apesar das muitas dificuldades que enfrentou no exercício das suas funções. Este foi o seu segundo título no Moçambola. Entre o primeiro título e este, viveu o ‘melhor de dois mundos’, indo de um clube onde tinha condições fantásticas, para um clube com precárias condições. O que mais faltou agora ao Ferroviário da Beira, que teve no Black Bulls?
Hélder Duarte: Os Black Bulls são um clube criado de raiz, onde pensado ao pormenor cada espaço daquela academia. Neste momento, tem três campos relvados e um sintético, mas estão a construir ainda a construir mais um de cada.
Tem casas individuais para os atletas, onde se controlam as refeições, o descanso, entre outros. Há um ginásio, um departamento médico, com equipamento e material bastante evoluído e um conjunto de serviços de apoio ao nível dos existentes na Europa.
Por sua vez, o Ferroviário da Beira, apesar de ser um clube que em 2024 se tornará centenário, está parado no tempo. Possui um relvado do campo principal em muito mau estado, a academia do clube, além de ser muito distante do estádio principal, não apresenta condições mínimas de trabalho.
No Ferroviário da Beira treinávamos no estádio municipal, com piso sintético, para não danificar muito o campo principal.
Tínhamos que nos deslocar de autocarro para o estádio municipal, depois tínhamos que regressar ao estádio principal para fazer gelo ou ginásio. Departamento médico não existia e os jogadores eram tratados numa clínica que nem conhecia.
Não havia pequeno-almoço ou almoço para os atletas.
Resumindo: havia muita falta de organização e profissionalismo.
Mas, apesar disso, eu e o director desportivo, Artur Faria fomos tentando colmatar esses problemas todos; e penso que conseguimos um brilhante resultado no final de tudo.
Francisco Oliveira: Pensa que o argentino Santiago Colombatto é a ‘peça’, que falta na ‘engrenagem’ deste atual FC Famalicão 2023-24?
Hélder Duarte: Eu nunca vejo as coisas por esse prisma. Dou sempre mais importância ao todo do que a este ou àquele jogador. Se falarmos no Santiago Colombatto, temos que falar antes de Pote, Ugarte, Toni Martinez, e tantos outros.
O importante é o todo; e nunca A, B ou C.
Santi Colombato é um grande jogador, mas o FC Famalicão tem e vai continuar a ter grandes jogadores, porque faz parte do projecto do clube essa linha de orientação.
Francisco Oliveira: Ser Campeão do Moçambola por duas vezes, mas não disputar a Liga dos Campeões de África é algo que lamenta muito; ou não?
Hélder Duarte: Costumo dizer que futebol é o momento, e as oportunidades são para se agarrarem. Fui campeão em 2021 e podia jogar a Liga dos campeões africanos em 2022. Mas para isso, no entanto, teria que ter abdicado de ter tido a experiência de ter trabalhar numa primeira divisão, em Portugal, com o Rui Pedro Silva.
Reconheço grandes competências e qualidades, tanto humanas, como profissionais, ao Rui Pedro Silva. Foi um ano de grande aprendizagem, onde conheci profissionais de excelência, em todos os departamentos. Não estou nada arrependido, apesar de não termos sido felizes em Famalicão.
Voltei ao Moçambola no ano 2023 e fui novamente campeão e poderei voltar a ter essa possibilidade de jogar a Liga dos Campeões Africana.
Na verdade, entusiasmam-me muito mais os projetos em que me envolvo e ter sucesso nos mesmos do que as competições propriamente ditas.
Até porque as equipas Moçambicanas ainda não estão preparadas para competir ao mais alto nível nessas competições.
Francisco Oliveira: O ex-Famalicense Artur Faria foi quem o convidou a regressar ao país banhado pelo Índico. A sua experiência foi determinante no título de Campeão do Ferroviário da Beira?
Hélder Duarte: É verdade que o foi o Artur Faria que me convidou a regressar a Moçambique. Cruzei-me pela primeira vez com o Faria quando ele foi jogar para o USC Paredes, era eu era júnior e fazia parte do plantel sénior.
Por incrível que pareça, e muitos anos depois volto a cruzar-me com ele, em Moçambique, eu a iniciar o projeto Black Bulls, com o Artur Faria a ter sucesso no Costa do Sol, treinado pelo Mister Horácio Gonçalves.
Em 2021 fomos adversários, e eu levei a melhor frente ao Costa do Sol. Nesta última temporada, ele ingressa no Ferroviário da Beira e fez-me o convite para trabalhar com ele.
Aceitei, com naturalidade. A experiência dele e o seu conhecimento do futebol moçambicano ajudaram muito na conquista deste Moçambola.
Eu venci dois, mas o Horácio Gonçalves já venceu muitos mais títulos.
Francisco Oliveira: Quais são as suas expectativas para os próximos desafios?
Hélder Duarte: Os próximos desafios ainda não estão definidos. Há a possibilidade de voltar a trabalhar com o Rui Pedro Silva, como a de regressar a Moçambique, para renovar com o Ferroviário da Beira, ou ingressar em outros dois clubes. Se conseguir algum projecto mais perto de casa e da família, vou aceitar, senão devo regressar a Moçambique e continuar a minha carreira por lá.
Imagens: DR / Arquivo pessoal de Hélder Duarte
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