A noite cai sobre Atuona, uma antiga comunidade nas ilhas Marquesas, sem concessões ao dia. Não há poentes nem as nuances do crepúsculo, só a silhueta escura e prepotente do monte Temetiu a negar à cidade um olhar sobre a linha do horizonte. Com a noite chega uma escuridão quase líquida, sibilante, musical. A electricidade existe, mas não se gasta em iluminação pública.
Nas Marquesas aprende-se que poucas coisas são realmente essenciais na vida, e uma delas é a noite. De dia, o calor húmido e insuportável fustiga o corpo, a luminosidade excessiva magoa o olhar, a cor escura das montanhas de pedra vulcânica esmaga os ânimos. Depois, chega a noite. Com ela uma brisa que vem do mar, um silêncio que também é feito de gente que canta na distância, uma serenidade que é uma desforra da alma. A pequena jangada de palmeiras e tradições, perdida no centro do Pacífico, respira de novo.
Ao contrário das outras ilhas da Polinésia, as Marquesas têm pouco do paraíso tropical. As erupções vulcânicas deixaram uma morfologia infernal: montanhas intransponíveis, vales fechados, baías apertadas, planaltos que terminam abruptamente sobre o vazio e uma pedra basáltica, negra como a noite.
Jacques Brel e Paul Gauguin escolheram o fim do mundo para o fim da vida
Os turistas não gostam, mas Jacques Brel, ícone maior da canção francesa, gostou e quis passar aqui o tempo de vida que lhe restava, e aqui continuar depois de morto. Talvez lhe interessasse precisamente o sabor a fim do mundo deste arquipélago. Por seu turno, o pintor Paul Gauguin, autor de uma obra singular que se mesclava com a vida, escolheu as Marquesas pela mesma razão. Depois de uma estadia frustrante no Tahiti, onde a realidade colonial há muito adulterara a vida primitiva e inocente dos indígenas, Gauguin decidiu mudar-se para a remota ilha de Hiva Oa em Setembro de 1901.
Sento-me na campa de Gauguin a olhar para o mar que só fica azul ao largo, a ouvir música na distância. Há sempre alguém que toca, nas Marquesas: órgão na missa, ao domingo de manhã; e ukelele à sombra das palmeiras, no resto da semana. Também há sempre alguém que canta. Até os cavalos trauteiam, como diz Brel na sua derradeira canção, “Les Marquises”.
Brel repousa a poucos passos de Gauguin — 50 passos dos meus, para ser exacto. Caminho pelo cemitério cheio de ervas daninhas, com árvores de frangipani e coqueiros cujas raízes que levantam algumas das pedras tumulares mais antigas; ao fundo, o mar. Reparo que este é o cemitério mais bonito, mais tranquilo, mais comovente onde já estive.
Cantar e descobrir a vida nas Marquesas
Ouço cantar: “et par manque de brise/ le temps s’immobilise/ aux Marquises”. Há sempre alguém que canta, nestas ilhas, e desta vez sou eu. Nas Marquesas descubro que poucas coisas são essenciais na vida, e uma delas é predispor a própria morte.
Anoitece e oiço o mar: ignorância, transfiguração, humanidade, conhecimento