Lulas e melões não ligam bem no prato, tal como Lula da Silva e Giorgia Meloni não combinam nem um pouco no plano político. Ambos aparecem, no entanto, quase em simultâneo, na ribalta eleitoral por estes dias, Meloni por ter ganho a eleição em Itália e Lula por se preparar para fazer o mesmo no Brasil. Face a sinais políticos tão divergentes que leitura podemos fazer?
Olhando a partir da esquerda em que me revejo, espera-se combater a azia da vitória da extrema-direita em Itália com a vitória de Lula no Brasil. Subscrevo o sentimento, mas confesso que não me sinto especialmente ameaçado pela vitória de Meloni nem me parece que da desejada vitória de Lula nasça uma invencível força que permita uma verdadeira mudança. E não, não me sinto atacado por nenhum síndrome de letargia ou indiferença democrática, antes me cansam os arroubos ciclotímicos de tanta gente de boa-fé.
À esquerda encheram-se as redes sociais com suspiros e lamentos. Vão desde o banal e costumeiro lamento da falta de cultura política do bom povo votante, aos suspiros pelo nefando desatino dos herdeiros da brilhante civilização romana, que em vez de se sentirem esmagados pela monumentalidade que lhes enche as ruas se mostram dispostos a esmagar a democracia. Isto tudo li eu, percebendo na leitura um misto de raiva contra o povo votante que não consegue entender quem lhe quer bem e o paternalismo de quem, de cima da burra, observa a decadência da velha Roma. Há apenas meio ano atrás, as mesmas luminárias rejubilaram com a eleição de Gabriel Boric no Chile, como se aquele fosse o sinal para a tomada do poder pelas massas secularmente exploradas e aviltadas. Rejubilarão de novo daqui a dias (assim espero) com a eleição de Lula à primeira volta, esquecendo rapidamente o meloal italiano.
Pensar a mudança para nada ficar como está
Saltitar entre desalento e esperança há de ser próprio da condição humana, mas ao fim de algum tempo a coisa torna-se cansativa. Relativizamos então a importância dos sinais e damos por nós desconfiando que Tancredo, o sobrinho de O Leopardo, estava coberto de razão quando dizia “Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”. A questão é: como devem pensar a mudança aqueles que querem que nada fique como está?
Um sistema político, qualquer que seja, constrói em torno de si condições de perpetuação ao mesmo tempo que exclui tudo o que o possa fazer perigar. Cria baias, fronteiras intransponíveis, definindo o possível e o impensável. Estes limites apenas são elásticos na medida em que o núcleo de sustentação do sistema se movimenta por vezes, embora apenas o faça para que “tudo fique como está”. Basta observar como a democracia liberal em que vivemos tem hoje maior abertura para tolerar ataques ao que podemos designar por «superestrutura» relativamente ao «infraestrutural». Tolera, por exemplo, que se ponha em causa a autonomia do sistema judicial, como está a acontecer em países como a Polónia ou a Hungria e pode também acontecer em Itália, mas não tolera tudo o que ponha em causa a ordem económica parida pelo capitalismo financeiro, como ficou demonstrado, uma vez a título de exemplo, com a punição do Syriza na Grécia aquando da crise de 2008.
Mobilizar à esquerda, é preciso. Mas como?
Prefiro ter na ementa Lulas a Melões, disso não há que duvidar. Entendo, ainda assim, que nem Meloni nem Lula conseguirão sair das baias que o sistema consente. Esta é uma boa e uma má notícia, depende de como se olhe. Certo é que o sistema só mudará a sério quando ao sobressalto cívico que hoje se sente (e se traduz no crescimento dos chamados extremismos e na erosão do centrão) se juntar uma narrativa revolucionária verdadeiramente mobilizadora. À direita esse caminho está a ser feito e percebemos já para onde nos conduz. Enquanto isso a esquerda permanece demasiado defensiva, fazendo lembrar a seleção do Fernando Santos: este tem bons jogadores e não os aproveita, a esquerda tem boas causas e dificuldade em torná-las mobilizadoras. Como saímos disto? Será suficiente trocar de treinador?
Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.