É inegável que temos receio do que não conhecemos. De quem não conhecemos. Habituámo-nos, desde cedo, a partilhar a nossa vida com certas pessoas que conhecemos bem e a desconfiar das que não conhecemos. Aceitámos socializar, mas quase sempre por intermédio das pessoas que compõem o nosso núcleo duro.
Influenciamo-nos uns aos outros, fortalecermos os pontos em comum. Quando estes afrouxam ou deixam de existir, quase sempre aumenta a distância entre familiares e amigos. A coesão parece, por isso, depender de uma certa homogeneidade entre as pessoas, de pontos em comum, de convergências.
A tolerância com o que/quem é diferente é algo que devemos uns aos outros se defendermos a liberdade. Porém, na verdade, mesmo que aceitemos a diferença, sentiremos dificuldade em incluí-la no nosso círculo mais íntimo pela simples razão de que essa inclusão importa proximidade, tempo, homogeneidade e convergência.
E porque me lembrei eu disto?
Desde que me conheço que tenho muitas incertezas sobre as fronteiras, sobre a razão de ser das nações, dos Estados. A primeira vez que ouvi (que ouvi mesmo) a letra da canção Imagine de John Lennon percebi que as minhas dúvidas nascem do confronto entre aquilo que idealmente gostava que fosse o mundo e o mundo que realmente existe.
Gostava de viver num mundo em que ninguém combatesse contra o outro. Gostava de viver num mundo completamente harmonioso. Utopia, sonho, chamem-lhe o que quiserem.
Por isso é que continuo a ter dúvidas sobre as fronteiras. Por isso não percebo as guerras. Por isso nunca percebi o que é o ódio. Ainda hoje não conheço esse sentimento.
Percebo, porém, a razão de ser das fronteiras, tal como percebo a razão de ser da expressão “minha casa, meu reino”.
Nos últimos anos, e desde que a maternidade passou à fase de me permitir voltar a olhar o mundo, percebi que um dos grandes motores da oposição ideológica direita/esquerda decorre do modo como se trata a organização das fronteiras (o outro grande motor é a organização da propriedade).
Nacionalismo, patriotismo, globalização, proteccionismo, nacionalidade, cosmopolitismo, contrato social, regime político, entre muitos outros conceitos, estão directamente relacionados com a organização das fronteiras.
Não é por acaso que na Itália a extrema-direita está próxima do poder. O mesmo na Suécia. O mesmo na Hungria, onde já lá está há muito e com história recente de violência para com as liberdades e os direitos políticos.
E se há tema fundamental que parece explicar a ascensão da extrema-direita, esse tema é o da radicalização do discurso quanto ao modo de organizar fronteiras. Afirmam, com toda a certeza, que as fronteiras têm de se fechar aos imigrantes. Não os querem. Não são bem-vindos.
Este discurso, se traduzido em votos, como tem vindo a ser o caso, assentará, por exemplo, no medo que a população parece ter quanto ao que é diferente. Assentará, e muito, no falhanço da integração de minorias dentro de um mesmo povo. Assentará numa espécie de nacionalismo de “nós” contra “eles”. Assentará, em última análise, no medo, na explosão de frustrações.
A extrema-direita, como fez no passado, afirma ter encontrado (também) nos imigrantes os culpados do colapso do elevador social. A culpa é “deles”.
É óbvio que não é apenas isto que explica o sucesso da extrema-direita na Europa. Há outras coisas. Mas esta salta à vista pois são exactamente os países onde existe imigração e fraca integração desses imigrantes nas sociedades de destino que hoje se veem na eventualidade de serem governados pela extrema-direita.
Eu também sonhei que era possível viver como o John Lennon cantava. Eu também gostava. Mas, na verdade, os povos ainda não estão (talvez nunca estejam) preparados para isso. No entretanto, os moderados, à esquerda e à direita, devem dar mais atenção aos receios e medos dos povos, ao que os aflige e angustia. Só quando compreenderem o que se passa no terreno é que serão capazes de desinsuflar o balão demagógico do medo que a extrema-direita tem vindo a bombear. Mas, para isso, os moderados de direita e de esquerda têm de sair das academias, dos gabinetes, das vidas burguesas, do comentário político pago nos Órgãos de Comunicação Social e correr atrás do prejuízo. É isso que eu espero e é isso que eu exijo! É hora de se deixarem de tretas e colocarem as mãos na massa pois o que se vê no horizonte não tem as cores do arco-íris.
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Obs: texto previamente publicado na página facebook de Célia Borges, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
Imagem: Ivan Aivazovsky