Na sua segunda auto-biografia, o realizador sueco escreveu que “perto do final dos anos 70, era para dirigir Os Contos de Hoffman na Ópera de Munique. Comecei a fantasiar sobre o verdadeiro Hoffmann, que se sentava na adega de Luther, doente e quase a morrer. Escrevi nas minhas notas: “A morte está sempre presente. A barcarola [uma canção de barcos veneziana], a doçura da morte. A cena de Veneza fede a decadência, lascívia crua, e perfumes fortes. Na cena de Antonia, a mãe é intensamente assustadora. O quarto está povoado de sombras que dançam e bocas que abrem. O espelho na ária do espelho é pequeno e brilha como uma arma do crime.”
“Num dos contos escritos por Hoffmann há um quarto mágico, gigante. Foi esse quarto mágico que eu quis recriar nos palcos. O drama seria representado com aquele quarto situado em primeiro plano e a orquestra em segundo plano.
“Também há uma ilustração das histórias de E. T. A. Hoffmann que me assombrou vezes sem conta, uma imagem do Quebra-Nozes. Estão duas crianças muito próximas a tremer no crepúsculo da véspera de Natal, esperando impacientemente que se acendam as velas da árvore e que se abram as portas para a sala de estar.
“Foi essa cena que me deu a ideia de começar Fanny e Alexander com uma celebração de Natal.”
Visão da morte
Em Ingmar Bergman: O Cheiro Esquisito do Cinema, parte do catálogo dedicado ao cineasta editado em 1989 pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, João Bénard da Costa pergunta se “são fantasmas ou são reais Oscar Ekdahl e o Bispo quando, depois de mortos, aparecem a Alexandre? Obviamente qualquer resposta categórica é grosseira e redutora. Mas no mundo final de Bergman, parecem abolir-se as fronteiras entre a vida e a morte, ou pelo menos a morte é uma longa passagem que não cessa no momento físico dela.
“Se o concedermos para Lágrimas e Suspiros ou para Fanny e Alexander (ou, antes, para A Hora do Lobo) pouca ou nenhuma razão nos assistirá se recusarmos a mesma “lógica” a Face a Face. É tão possível sustentar que, depois da sua tentativa de suicídio, Jenny vive “intermitentemente” tempos de vida e tempos de morte (na zona entre uma e outra) como defender que a partir do fabuloso grande plano que precede e acompanha o gesto com que engole os comprimidos, Jenny está tão morta como Agnes, Oscar ou o Bispo e que, a partir daí, a visão face a face que o filme propõe (metafísica e figuradamente, pois nunca Bergman levou tão longe o uso insistente do grande plano, até a uma escala que ultrapassa os limites abissais do uso que já fizera de tal figura gramatical) é a visão da morte, é a visão da morta*. Como nos filmes e projectos contemporâneos de Face a Face** essa vertiginosa transição é progressiva.”
Filme mal compreendido?
Já Robin Wood, para a Canadian Forum nº 41, escreveu que “a afirmação de Bergman de que Fanny e Alexander vai ser o seu último filme deve-se entender indubitavelmente de forma mais retórica que literal: já terminou outro. É certo que especificou que ia ser o seu último filme para cinema, e o novo, Depois do Ensaio, foi feito para a televisão sueca – mas também Fanny e Alexander o foi na sua forma original e mais longa e o novo filme já foi adquirido para distribuição em sala fora da Suécia: as distinções são vagas. No entanto, a declaração continua a ser útil para salientar a natureza particular de Fanny e Alexander: a de um testamento e soma artísticos, o tipo de trabalho que qualquer cineasta gostaria que o seu ‘último filme’ fosse. Também é o filme mais geralmente acessível que Bergman fez em muitos anos, talvez desde Morangos Silvestres e é-o por impressionante contraste ao imediatamente anterior Da Vida das Marionetas. Ainda assim, a sua acessibilidade e popularidade merecidas tanto entre os críticos como o público não garantem necessariamente que tenha sido totalmente entendido; eu fico impressionado com o facto de a maioria das críticas terem ignorado ou sido muito vagas precisamente sobre os aspectos do filme que me parecem mais interessantes, aspectos centrados em Ishmael. Ou os nossos críticos não sabem o que fazer de Ishmael, ou não querem fazer nada em relação a ele (ela). Um longo artigo sobre o filme por William Wolf na Film Comment, por exemplo, não consegue oferecer mais do que ‘O Alexander resgatado … conhece o misterioso sobrinho de Isak, Ishmael, que o apresenta ao sobrenatural’ (que Alexander já tinha conhecido em várias ocasiões, já agora) ‘com uma conversa hipnotizante de poderes mágicos’. Na verdade, a comunicação mais significativa de Ishmael com Alexander é que é suposto ser muito perigoso, razão pela qual permanece trancado; podemos deduzir que os nossos críticos também o acham muito perigoso. Vou voltar a Ishmael, que me parece o culminar, não só deste filme, como de todo o trabalho de Bergman até à data.”
* “É possível aproximar esta visão da morte – estas visões de mortos – das crenças orientais (búdicas) sobre o período que se segue à morte. De acordo com tais crenças (cf. nomeadamente O Livro dos Mortos tibetano) o espírito do morto recusa a separação do seu próprio corpo e tenta habitá-lo como se a vida continuasse. Por isso, a tarefa dos vivos é a concentração, de modo a convencer o morto da realidade da sua morte e a fazê-lo aceitar a separação do espírito e do corpo. Só assim se evitará que a alma continue errante (alma penada) na desesperada busca do seu invólucro carnal. Só assim terminará a terrível angústia do morto e este poderá conhecer a paz. De certo modo, as visões da morte em Lágrimas e Suspiros, Face a Face ou Fanny e Alexandre parecem evocar esta milenária crença.
** Nomeadamente no script do filme jamais realizado – O Príncipe Petrificado – e em Da Vida das Marionetas, obra com fortíssimas semelhanças com Face a Face.”
Fanny & Alexander de Ingmar Bergman foi exibido em 3 Dezembro de 2020 pelo Lucky Star – Cineclube de Braga, integrado na habitual programação de celebração do Natal no cinema. Em anos anteriores, com idêntico propósito, o cineclube bracarense exibiu, recorde-se, Do Céu Caiu Uma Estrela de Frank Capra, Os Sinos de Santa Maria de Leo McCarey, O Outro Lado da Esperança de Aki Kaurismaki, Merlusse de Marcel Pagnol e Francesco, giullare di Dio de Roberto Rossellini.
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