Carl Gustav Jung, uma das personalidades mais marcantes da vivência intelectual e espiritual do Século XX, cujo legado tem tido uma influência fundamental na compreensão da nossa condição humana, faleceu há seis décadas atrás, pelo que cumpre rememorar o seu nome e a sua vida, bem como a dimensão e influência da obra produzida. Psicólogo e psiquiatra, estudioso da mente e do divino, quer nas suas formas de expressão individuais quer coletivas, Carl Jung viveu uma vida excecional.
Jung nasceu em 8 de julho de 1875, na povoação de Kesswil, no cantão da Turgóvia, na Suíça, junto dos margens do Lago Constança, filho de Paul Achilles Jung, um pastor protestante, e de Emilie Preiswerk, uma mulher com uma profunda sensibilidade espiritual.
Os estudos de Medicina na Universidade de Basileia conduziram a vocação do jovem Carl Jung para a esfera da psiquiatria.
Jung exerceu a sua carreira no Burgholzli, o hospital psiquiátrico de Zurique, então dirigido pelo psiquiatra ilustre Eugen Bleule. Além disso, abriu uma clínica privada em Küssnacht. Em 1903, casou-se com Emma Rauschenbach, de quem teve cinco filhos.
Já nessa época, Jung propunha uma abordagem humanista no âmbito da saúde mental. Na sua perspetiva, os profissionais de saúde mental deveriam privilegiar uma abordagem do ser humano na sua totalidade e não limitar-se apenas aos sintomas. Em suma, tinha uma visão holística da pessoa humana. Preconizava uma compreensão individualizada e personalizada. Por isso, evitava generalizar um método como panaceia para um determinado tipo de anomalia psíquica. Cada individuo é único e, sendo assim, deve ser evitado qualquer tipo de padronização.
Em 1907, Jung conheceu pessoalmente Sigmund Freud. Jung viu em Freud um companheiro para explorar os caminhos da mente humana. O primeiro encontro entre os dois homens, em 27 de fevereiro, transformou-se numa conversa de treze horas ininterruptas. Depois desse encontro, gerou-se uma amizade profunda, durante a qual promoveram um intercâmbio de informações sobre os seus sonhos, partilharam análises, trocaram confidências e discutiam casos clínicos.
Contudo, a publicação do livro “Metamorfoses da Alma e Símbolos da Libido”, na qual Jung criticou a ênfase freudiana, que considerava excessiva, do impacto do impulso sexual na energia psíquica, levou a uma rutura entre ambos. Por seu turno, Freud criticou Jung de abrir as portas da psicologia ao ocultismo e ao misticismo.
Com a separação de Freud, Jung ficou abalado, mas empenhou-se em renovar o sentido da sua vida. Seguiu-se uma série de experiências oníricas e visionárias que forneceram material valioso para o trabalho de toda uma vida.
No início da década de 1920, Jung adquiriu uma propriedade em Bollingen, junto das margens do lago da Zurique, onde construiu uma torre, simbolizando o seu renascimento interior.
Nas décadas de 1920 e de 1930, Jung fez longas viagens pela África, América e Ásia, que lhe proporcionaram um conhecimento mais aprofundado da diversidade cultural e consequentemente do inconsciente coletivo da humanidade.
Em 1934, tornou-se presidente da Sociedade Médica Internacional da Psicoterapia, num contexto marcado pela ascensão dos regimes ditatoriais na Europa e no mundo.
Carl Jung interpretou o nazismo, o comunismo e outros “ismos” em geral como fenómenos patológicos de identidade. No caso específico da Alemanha, Jung considerou que uma irrupção do inconsciente coletivo – a Wotan – havia tomado posse da alma do povo alemão. Segundo Jung, Wotan é a personificação das forças naturais em desequilíbrio e efervescência, gerando paixões e apetites combativos.
Sob a liderança de Jung, a Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia conseguiu realizar congressos fora da Alemanha e protegeu psicoterapeutas alemães que saíram da Alemanha por razões políticas e étnicas.
Como retaliação, o regime nazi decidiu que toda a obra junguiana fosse interditada e destruída na Alemanha, bem como nos países entretanto ocupados pela máquina de guerra alemã.
Três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1948, teve lugar a inauguração do Instituto Freud, que representou a sua consagração, confirmada pela atribuição de doutor honoris causa por diversas universidades em todo o mundo. Jung emergiu como o promotor de um novo humanismo adequado às aspirações da humanidade contemporânea.
Jung foi um autor de uma vasta bibliografia, no qual mereceram destaque as seguintes obras: “Sete Sermões aos Mortos”; “Tipos Psicológicos”; “O Homem e os seus Símbolos”; “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”; “O Eu e o Inconsciente”; “Sincronicidade”; “Os Complexos e o Inconsciente”; “O Desenvolvimento da Personalidade”; “A Psicologia da Transferência”; “A Energia Psíquica”; “Espiritualidade e Transcendência”; “Memórias, Sonhos, Reflexões”; “O Livro Vermelho”.
Como era Carl Gustav Jung? Fisicamente, era alto, vigoroso e forte, com um olhar fulgurante. Adorava percorrer as montanhas, velejar, fazer jardinagem, cortar lenha, construir, praticar jogos e outras atividades manuais. Apreciava gastronomia e vinhos de qualidade. Fumava charutos e cachimbo. A família, os amigos e os conhecidos reconheceram em Jung a jovialidade, o sentido de humor e a alegria, bem como a capacidade de diálogo e a tolerância. Na sua presença, as pessoas sentiam-se à vontade.
Carl Gustav Jung partiu dos planos terrenos no dia 6 de junho de 1961.
Os principais conceitos da psicologia junguiana
Carl Jung prestou um contributo valioso para o conhecimento da condição humana, tendo introduzido um conjunto de conceitos da maior relevância.
Entre estes conceitos, merecem destaque os seguintes:
– O inconsciente coletivo, o fundo psíquico comum a todos os seres humanos eternamente existente sob as diferentes peculiaridades individuais, locais, nacionais, étnicas e históricas. Consiste na camada mais profunda da psique humana, sendo um conjunto de conteúdos vivos e universais, de imagens arquetípicas, comuns às religiões, mitologias e culturas de todos os povos.
– O inconsciente pessoal, que consiste no conjunto dos conteúdos do mundo interior de cada individuo.
– A sincronicidade, que se aplica a acontecimentos que ocorrem concomitantemente sem, no entanto, ser causa um do outro; por exemplo, quando a um pensamento corresponde a um acontecimento objetivo. Pode-se estar a pensar numa pessoa e eis que essa pessoa aparece ou envia uma mensagem.
– A persona, que consiste na máscara social, que é assumida como a verdadeira personalidade do ser humano.
– As projeções, que atribui a outrem atitudes e comportamentos que o próprio possui.
– A sombra, o conjunto dos elementos psíquicos reprimidos;
– As funções, designadamente as sensações, ligadas aos sentidos, o sentimento, ligado à dimensão afetiva, o pensamento, correspondendo á dimensão intelectual e a intuição, que conhece para além da mente.
A compreensão renovada do feminino e do masculino na condição humana. A “anima” representa a natureza feminina no ser humano, composta por aspetos eróticos e criadores e por humores, O “animus” consiste na natureza masculina, constituída pela vontade de agir, iniciativa, organização. Ambas as dimensões feminina e masculina contêm aspetos positivos e negativos.
A visão espiritual de Carl Jung
Em 1959, John Freeman, apresentador do programa Face to Face da televisão britânica BBC, questionou Jung se ele acreditava em Deus. Ele respondeu: “Eu não preciso de acreditar, eu sei”.
Esta resposta tem tido uma ampla repercussão. Na perspetiva de Jung, a verdade sobre Deus é complexa porque Deus é o Mistério cuja essência está além da compreensão humana.
Como resultado da natureza misteriosa e incompreensível do Divino, nenhuma imagem do Divino jamais será adequada. Na tentativa de compreender o Divino, cada um de nós cria a sua própria imagem, que não é precisa e exata. O próprio Jung reconheceu isto sobre a sua própria imagem de Deus.
Para Carl Jung, a espiritualidade foi, desde muito cedo, o centro de sua atenção e o alvo de seus estudos. O fascínio que ela exercia era tamanho, que uma grande parte de suas obras pode ser considerada uma tentativa de se compreender o fenómeno espiritual.
Jung destaca a relevância de um comportamento espiritual no ser humano e de uma busca pelo transcendente.
Ele considera que a transcendência como a união de conteúdos conscientes e inconscientes, ou seja, a totalidade psíquica.
Essa união resulta da transformação do centro organizador da psique, caraterizada pela passagem do Ego para o que Jung denominou de Self, tornando-o o centro estruturador da nossa totalidade psíquica.
O processo de autoconhecimento amplia a nossa consciência, pois cada vez mais aprofundamos no conhecimento de nós mesmos como um todo.
Quanto maior é a consciência da nossa totalidade, isto é, de tudo o que está presente na nossa psique, integramos os nossos opostos, as nossas luzes e as nossas sombras, mais nos aproximamos do Self, o centro mais profundo da nossa condição humana.
Jung estabelece uma interpretação psicológica para a religião e a espiritualidade em geral, abordando-as como experiências profundas e pessoais. As situações espirituais são compreendidos como fatos e dados verídicos da experiência psíquica.
Deste modo, a religião assume-se como uma característica inerente à própria fenomenologia da psique.
A experiência religiosa, em toda a sua dinâmica simbólica, baseia-se em realidades psíquicas internas, cuja natureza não é influenciável por raciocínio lógico.
Jung e o gnosticismo
A visão da religião como experiência psicológica remete ao grande interesse e simpatia de Jung pela gnose, que considerava uma sabedoria antiga e perene.
Jung teve um grande interesse por Arthur Schopenhauer, justamente porque o grande filósofo alemão tinha uma grande influência gnóstica. Dado que o seu interesse por Schopenhauer remontava à infância, podemos considerar Jung, sob muitos aspetos, como um gnóstico profundo e convicto ao longo de maior parte da sua vida terrena.
A contribuição de Jung para uma interpretação esclarecida contemporânea do gnosticismo e o desenvolvimento dos estudos gnósticos em geral é absolutamente notável.
Jung interessou-se pela descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, ocorrida em 1945, desde o princípio. Foi um antigo amigo e colaborador de Carl Jung, Gilles Quispel, que tomou a iniciativa de traduzir e publicar os livros gnósticos de Hag Hammadi. Em 1952, embora a crise política no Egito e os diferendos acadêmicos prejudicassem os trabalhos relativos aos manuscritos, Quispel adquiriu um dos códices em Bruxelas, e desta porção da grande biblioteca realizou-se a maior parte das primeiras traduções. Esse documento – denominado Jung Codex – foi apresentado ao Instituto Jung de Zurique por ocasião do 80.º aniversário do Jung.
Jung entendeu que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais. Jung reconheceu que tais imagens surgem ainda hoje nas experiências interiores das pessoas, ligadas à individualização da psique. Ele reconhecia que os gnósticos expressavam imagens arquetípicas reais, que persistem e existem independentemente do tempo ou de circunstâncias históricas. Ele identificou no gnosticismo uma expressão poderosa, primordial e original da mente humana, uma expressão dirigida para a mais profunda e importante tarefa da alma, ou seja, a obtenção de sua plenitude. Os gnósticos, buscavam, acima de tudo, pela experiência da plenitude do Ser.
Para Jung, o gnosticismo, mais do que um conjunto de doutrinas ou ensinamentos, é a expressão da experiência interior do Divino em nós.
Em termos de psicologia junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão, em linguagem poética e mitológica, às suas experiências dentro do processo de individualização.
Jung não se considerava como um seguidor de nenhum dos grandes mestres espirituais, apesar de enaltecer o seu papel. A propósito de dois grandes mestres, Jung disse que Jesus, o Cristo, e Siddhartha, o Buda, representavam cada um o verdadeiro Eu ou Self, para o Ocidente e Oriente, respetivamente.
Com efeito, ele entendia que o desenvolvimento espiritual do ser humano não deve basear a fé numa fonte exterior (seja Jesus, o Cristo, Siddhartha, o Buda, ou outro grande mestre), mas na experiência interior natural da alma, que sempre considerou como a fonte de toda a gnose autêntica.
Carl Gustav Jung pode ser considerado como gnóstico, tanto no sentido geral de um verdadeiro conhecedor das realidades mais profundas do ser humano, como no sentido mais estrito de restaurador moderno do legado gnóstico da Antiguidade, adequando-o às aspirações mais profundas da humanidade dos nossos tempos.
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Espiritualidade | Cristo e Buda: Encontro entre o Ocidente e o Oriente