Uma ferida aberta não tem género, raça, cor, credo.
Vivemos numa sociedade com tecidos rasgados por uma opressão mais ou menos declarada, mais ou menos velada, que todos os dias nos obriga a sermos quem não somos. Na relação com os outros, no trabalho, em casa até.
Falam-nos de bem comum e de solidariedade social, de um olhar sobre os menos favorecidos, sobre os mais desprotegidos, e tudo isso se enrola numa língua de trapos, que o poder político, ama de aluguer da banca e dos seus interesses, alimenta com o suor e o sangue de quem apenas, e fosse isso pouco, clama por justiça.
A especulação sobre bens fundamentais da humanidade, como a água, as sementes, os alimentos, a energia renovável, é um roubo de cara destapada, sem punição nem castigo.
A ignorância é a maior das cegueiras, terreno fértil do populismo, que em Portugal não é exclusivo do «Chega», mas atravessa todo o espectro partidário, e que agora encontra num ou noutro caso mais desavergonhado, a forma de expiar os seus próprios pecados, qual panaceia ansiolítica de poder.
Não conheço outra forma de dizer NÃO a tudo isto, que não seja um regresso consciente às nossas origens, a uma vida simples, alheada do consumo frívolo, que encontra novamente na terra a sua filiação.
Multiplicam-se já os casos de pequenas hortas no quintal de cada um, na varando do prédio, em terrenos baldios que a comunidade partilha para produzir alimentos – as chamadas hortas urbanas, que não usam os fertilizantes nem pesticidas da Bayer, que agora também é Monsanto, nem as sementes transgénicas que produzem.
Recicla-se, faz-se compostagem, e produzem-se alimentos capazes de curar feridas e não as fazer abrir ou gangrenar.
Plantam-se limoeiros em recipientes plásticos reciclados de 20 litros, couves, nabos, cebolas, ervas aromáticas. E tudo medra.
Os pesticidas estão a aniquilar o ambiente e as pessoas, sendo responsáveis por inúmeros casos de cancro do aparelho digestivo, um dos que mais mata no nosso país.
Depois, temos ainda, na busca obstinada do lucro por via da exportação energética, a teimosa aposta nas linhas de Muito Alta Tensão, que atravessam e continuarão a atravessar o país, com efeitos muito nefastos na saúde colectiva.
Na vizinha Galiza, terra de gente com mais consciência destes perigos, melhor informada, bate-se o pé todos os dias à marcha criminosa da plantação destes monstros de ferro, e apesar dos movimentos de contestação contarem com apoios políticos, são as pessoas que, juntando-se nas suas comunidades, se dizem prontas para o combate, e fazem-no.
Temo que estes tempos de pandemia tenham ensinado pouco à generalidade dos portugueses, mas com «muitas gotas também se fazem oceanos», como já li neste espaço, haja por isso esperança enquanto houver, num só homem que seja, a capacidade de resistir e cravar no cimo de um monte a bandeira da liberdade mais pura.
Façamos pois em primeiro lugar a mudança em cada um de nós, nas coisas mais simples, até na palavra certa que se semeia no momento preciso, para que a luz cresça limpa no olhar de cada um.
Só assim reaprenderemos a ver.