Nostalgia para dar e vender

Nostalgia para dar e vender

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A nostalgia ou saudosismo nunca foi um dos meus vícios. Os argumentos “Antigamente é que era bom” e “Agora estamos a caminho do abismo” nunca me convenceram. Excepto, talvez, na gastronomia. (Arrisco-me a considerar a invenção do frigorífico e a criação da pasteurização como avanços extraordinários em termos de qualidade de vida e saúde pública, mas algo trágico para a culinária. Outros métodos de conservação conferidores de sabor aos alimentos quase desapareceram).

Como todos os nascidos a partir dos anos 90, várias foram as vezes nas quais ouvi repetidamente: “No nosso tempo é que havia imaginação! Agora as crianças compram tudo feito!”. Não vou desmentir os meus pais. Talvez eles tenham alguma razão. Até porque as histórias das suas infâncias com as “motas de pau” e os “carrinhos de rolamentos”, feitos por eles próprios, parecem fascinantes (sobretudo quando a ausência de travões nesses veículos resultava em embates inevitáveis nos muros mais próximos). Qual não foi o nosso espanto quando reparamos numa família de veraneantes em volta de um triciclo reclinado, movida a bateria e sem pedais.

A semelhança entre este veículo e os carrinhos de rolamentos de outrora era bastante caricata. Não se sabe se esses brinquedos infantis de outros tempos serão a inspiração para estes novos “meios de transporte”. Mas se isso se confirmasse, não seria algo inédito. A nostalgia vende (tal como o saudosismo). O chamamento retro já existe desde o Renascimento. O apelo à imagem, ao som, por vezes até ao cheiro do passado é uma das melhores estratégias de marketing. Desde os sabores supostamente “iguais aos da nossa infância” aos detergentes emanantes do perfume do sabão natural “mesmo como a avozinha gosta”, desde os intermináveis covers dos hits dos anos 60 e 70 aos ainda mais intermináveis remakes dos clássicos cinematográficos das nossas infâncias. Até poderiam referir-se as inúmeras reinterpretações cinematográficas, televisivas e teatrais da história de D. Pedro I e Dª Inês de Castro (cujo fascínio por parte de tanta gente eu continuo a não conseguir compreender).

Não se interprete esta observação como uma rejeição absoluta do passado. É perfeitamente possível aprender com ele, obter inspiração dele ou até mesmo reinventá-lo. Mas existe uma ténue linha separadora entre qualquer um esses comportamentos e a comodificação (i.e. mercantilização) do passado. Quando este se torna num mero objecto, perde significado. O significado do passado é de extrema importância. O contributo de quem interveio pessoalmente nele, idem.

Enquanto olhava para o triciclo reclinado (ou “novo carrinho de rolamentos”, dependendo do ponto de vista), lembro-me de ouvir o pai jocosamente exigir royalties por aquela jigajoga. “A patente é minha! Eu construí muitos protótipos daquilo quando era pequeno!”. Calma, Sr. Lúcio! Havia mais protótipos construídos pelas outras crianças dessa geração. Já não há patente: os carrinhos de rolamentos são de domínio público.


Imagem: Rückenwind


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Categorias: Crónica, Sociedade

Acerca do Autor

Pedro Maia Martins

Esposendense de nascimento, barcelense de criação e conimbricense por hábito. Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Colaborou no passado com o Jornal Universitário de Coimbra - a Cabra e com a Revista Via Latina - Ad Libitum. Foi o último editor de País e Mundo do referido jornal. Colabora neste no momento com a Vila Nova Online e a Revista Bica.

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