Dar Coisas aos Nomes | Ao fim

Dar Coisas aos Nomes | Ao fim

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Ao fim são muito poucas as palavras que podemos dizer serem realmente nossas. Às tantas, e não são precisos assim tantos anos para o descobrirmos, são mais as palavras que nos dizem do que aquelas que achamos querer dizer, poder dizer, poder querer. O que há de mais terrível na linguagem é que ela está sempre aqui, debaixo da língua, à nossa volta, e mesmo assim, de tão próxima e evidente, parece sempre avisar-nos: limpa os pés antes de entrares. E nós limpamos os pés. E não acontece nada. Bate à porta e diz o teu nome. E nós batemos à porta, apresentamo-nos, e continua a não acontecer nada. E mesmo que a porta se abra, e mesmo de pés limpos ou descalços, e mesmo que entremos, permanecemos num limiar. Não uma fronteira, não uma linha divisória que nos dê o infantil consolo de saber onde se detém um pé e onde o outro avança, o que é meu e o que é teu, onde se vive e onde se mata, países, muros, infâmias – nada disto. Antes um limiar, zona indiscernível, instante do intervalo, da suspensão, quando o ar nos falta e o sentido se esvai. A linha de fratura entre as coisas (e não uma imitação das coisas: um limiar não imita nenhum espaço reconhecível; é, aliás, onde o que nos é mais familiar se torna, de súbito, armadilha, abismo, espanto). Fica um entulho de palavras no aterro da garganta. Fica uma ferida, a mais íntima. Como estar diante de uma imagem: entre a luz e a sombra, entre o que faz sentido e o que desorienta, entre a fé num além e a imanência absoluta, um limiar é onde existir nos arde mais. Nenhuma contradição se resolve, nenhuma síntese nos redime. (Somos personagens de Kafka.)

E então? Diante da porta, bate-se à porta, chama-se, entra-se – e… ?

Não acontece nada porque já aconteceu tudo. Já tudo foi dito e repetido mil e uma vezes antes de nós. Caberá a cada um ir à procura da frase que faça luz à sua pequena noite. Caberá a cada um descobrir o que é para si dizer algo que faça sentido. E o que é fazer sentido? É ter o júbilo de se sentir enganado pelos truques do acaso, do sangue, da condição humana. É dizer obrigado e sentir que a gratidão se ilumina por inteiro, e o corpo e a alma parecem indivisíveis. É às vezes não dizer nada e saber que nos adivinham por dentro. É chegar a casa, à sua própria casa, a um lugar que não magoa dizer que é a nossa casa. É chegar a um sítio onde nos esperam. Um sítio onde pousar a cabeça (Manuel António Pina). Onde até as coisas nos reconhecem, mudas e inocentes. Coisas de humildade, de calor e frio. Coisas de lã, farinha, raspa de limão, madeira a arder. Coisas nas molduras, que nos olham desde que nascemos e nos veem crescer, nos veem a ser grandes e generosos e mesquinhos, a perdoar, a perder, a falhar melhor. Coisas que nos olham, em silêncio, sabendo que vão continuar depois de nós. Coisas inquietas porque, um dia, serão o pretexto para que alguém conte a nossa história. A história de alguém que, como toda a gente, aprendeu a segurar-se nas palavras de outros para chegar às suas, essa arte de citar sem aspas:

 

E ao fim são pouquíssimas as coisas

que em nossa vida a sério nos importam:

poder amar alguém, sermos amados

e não morrer depois dos nossos filhos.(*)

Como a mãe que nos dá a mão para atravessar a rua quando somos pequenos, para chegar ao outro lado, onde fica a tal casa, a tal porta, e batemos, chamamos, limpamos os pés – e se nem assim chegamos ao nosso destino, talvez seja porque o destino não é aonde se chega, mas é de onde se parte, onde tudo realmente começa: nós, os nossos filhos, as nossas mães, os nossos pais, o amor, uma casa, a vida.

 

4 de maio de 2019

 

(Uma versão deste texto foi lida na missa celebrada pelo Agrupamento de Escuteiros 1046 de Nine, em homenagem às mães, a 4 de maio de 2019.)

(*) Últimos versos do poema “Ao fim”, de Amalia Bautista (trad. Joaquim Manuel Magalhães, incluído no terceiro volume de Trípticos Espanhóis, ed. Relógio D’Água, 2004, p. 43)

Nota: a expressão “arte de citar sem aspas” pertence ao filósofo Walter Benjamin.

 

Imagens: Diogo Martins

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Categorias: Crónica, Cultura, Destaque

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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