Teçamos um exercício conjunto. Reflita o leitor sobre o que sucede quando determinada Lei e respetivo binómio regulação/aplicabilidade são, permanentemente, obscurecidas por neblinas de negação da realidade (?). Uma obtusa forma de a manter em vigor. De submeter uma tipologia de factos concretos à soberania do Direito.
Pois bem, pretende-se, neste contexto, trazer à liça o estado de coisas na órbita do apoio estruturado nas competições desportivas em Portugal, em sede de regulação. A escolha da temática não padece de inocência, diria – até – muito pelo contrário. Os graves acontecimentos havidos nos últimos anos, protagonizados (em generosa maioria dos casos) pelos apelidados grupos organizados de adeptos, vulgarmente denominados claques, fazem-nos pensar e repensar na lógica inerente à sua criação, mas também, senão mormente, no alcance da sua consagração em diploma legal específico: a Lei de Combate à Violência, ao Racismo, à Xenofobia e à Intolerância nos Espetáculos Desportivos (n.º 39/2009, de 30 de julho).
Estes grémios de adeptos devem constituir-se através de uma associação civil que ostenta como fito o apoio a clubes ou sociedades desportivas, pelo que os seus membros não necessitam de estar inscritos em qualquer entidade daquele cariz (Art. 3.º, alínea i), L. 39/2009, de 30 de julho). Bem sabemos, enquanto sociedade com pedigree demasiado “futeboleiro”, que o universo das claques não apenas carece de juventude, como também não é algo, apenas e só, orgulhosamente luso (1).
Na verdade, para muitos, a engrenagem essencial do support desportivo – não unicamente no futebol, mas também nas apelidadas modalidades –, é manuseada pelas claques, pelo que julgo ser fundamental levantar o véu sobre o modo através do qual estes adeptos conseguem exercer essa militância: em síntese, a forma como os próprios clubes sustentam e prestam auxílio os seus fiéis seguidores. Ainda que haja ventos de mudança (não sei se de esperança) relativamente a um potencial câmbio legislativo nesta matéria, a realidade esclarece-nos sobre as atuais “regras do jogo”. E, surpreendentemente, essas “regras” não são assim tão ocas.
Do ponto de vista da sindicância pública deste género de organizações civis, sabemos que as claques estão obrigadas à respetiva inscrição junto do Instituto Português e do Desporto e Juventude, I.P. (IPDJ), com a cominação de, se essa inscrição – atualizável – não se realizar, cessar o apoio por parte do clube (promotor do espetáculo desportivo, no léxico legal), desde o simples acesso a instalações à concessão de vantagens financeiras (Art. 14.º, n.ºs 1 e 2). Ora, este ponto é, verdadeiramente, a piéce de resistance. E o que acaba de ser dito suscita-nos, no mínimo, 2 questões de axiais.
Por uma banda, sem apelar a quaisquer matizes clubísticos, é, desde logo, inevitável tentar perceber se é ou não admissível o atual quadro em que se inserem as claques, designadamente no que ao seu registo diz respeito. Neste sentido, é pública a coexistência de dois pesos e duas medidas no cumprimento da legislação – aqueles clubes (e SAD) que não têm, nem ambicionam ter, os seus grupos organizados de adeptos devidamente registados no órgão público que os tutela; e todos os outros, aqueles “tipos esquisitos” que (imagine-se!) cumprem disposições legais reguladoras do espetáculo desportivo in totum.
Relativamente à primeira realidade – aquela que, em abono da verdade, ao caso mais importa –, o percurso argumentativo é excessivamente precário: a Lei é fraca; urge alterá-la; revela manifestas insuficiências de redação para a sua concreta e cabal efetividade, portanto…não se cumpre (!). É isto, em traços latos. Será aceitável defender o ostensivo incumprimento da legislação atual com esta base de argumentação?! Não será tal raciocínio uma espécie de law shopping (?): “esta Lei não nos interessa, por isso era capaz de ser bastante agradável encomendar outra”.
Perdoe-se-me a franqueza: algo assim, só pode ser risível. Sê-lo-á, primeiro porque abre um precedente de muito difícil repressão – se um incumpre, porque não poderão outros fazer o mesmo?!; depois, porque, na sua génese, uma posição com esta roupagem requer sustentação justificativa: há problemas de constitucionalidade com a Lei? Foram suscitados em devido tempo? Ou, ao invés, estará, verdadeiramente, em causa não um problema de reforço do texto legal, mas sim de coragem na aplicação uniforme do diploma?!
Por outra margem, o segundo problema que advém desta tela de areias movediças é, como se intui, a reação da tutela relativamente à passividade dos clubes incumpridores. Sublinho a parte dos clubes, por uma razão simples: se determinado clube desportivo tiver sob a sua alçada um conjunto/grupo organizado de adeptos não registados no IPDJ, I.P., realizará os espetáculos desportivos (teoricamente) à porta fechada (Art. 14.º, n.º 7). Ora, imagino que o legislador não estaria a sobrevoar um ninho de cucos quando redigiu a norma. O sentido da disposição é claríssimo, estando à vista de quem o quiser observar desapaixonadamente – assacar ao promotor do espetáculo desportivo a responsabilidade de coadjuvar o IPDJ, I.P. no controlo atualizado, claro e inequívoco, não apenas da existência daqueles grupos, mas também da respetiva atuação, a todo o tempo. Se, de um espectro, se torna, no mínimo, inexplicável que em face da escolha (nem sequer velada!) de incumprimento por parte de determinadas entidades desportivas, o IPDJ, I.P. nada faça, torna-se, de outro, simultânea e absolutamente surpreendente a inércia governamental em que nos encontramos submersos, perpetuada pelo representante do órgão executivo do Estado, o Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Dr. João Paulo Rebelo que, ainda em abril, quando questionado sobre este tema, afirmava, lapidarmente, que “a Lei das claques é ineficaz”.
Aqui chegados, diria que comungo da máxima, na esteira de Camus, de que reconhecemos o nosso caminho ao descobrir os caminhos que se afastam (2). O mito da negação da realidade não pode vingar, nem tão-pouco abrir a porta a soluções enviesadas. Parece-me óbvio que a solução para o “pecado” das claques deve ser articulada e ambivalente: sensibilização dos aplicadores/executores da legislação em vigor no sentido do enforcement prático do conjunto de normas existentes, sem complacência ou simpatia clubísticas, bem como – e de braço dado –, a manifestação de um compromisso indissolúvel por parte da Secretaria de Estado que tutela o Desporto, direcionado a limar, de uma perspetiva realista, as arestas do apoio organizado a clubes.
Não se pede um salto de fé. Somente proatividade.
(1) Vejamos o exemplo inglês, em que as claques foram objeto de estrita regulação a partir do início dos anos 90.
(2) Referência a Albert Camus, O mito de Sísifo (1942).
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