Lucky Star | Viagem em Itália, de Roberto Rosselini

Lucky Star | Viagem em Itália, de Roberto Rosselini

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A viagem por Itália do casal interpretado por Ingrid Bergman e George Sanders que se transformou no maior estandarte do cinema moderno será apresentada pelo Lucky Star – Cineclube de Braga sob a égide do tema do ciclo do mês de outubro, ‘O Belo e a Consolação’. Viagem em Itália, de Roberto Rosselini, será apresentado amanhã, 11, nos cinemas do BragaShopping.

 

 

Em entrevista a Adriano Aprà e Maurizio Ponzi em 1965, e sobre o sentido do final do filme, Rossellini disse que “talvez estivesse errado em não o tornar totalmente óbvio, em mostrá-lo como uma descoberta. Mas isso não me convinha. Acho que é uma coisa bastante normal na sociedade moderna que muitos casamentos são companhias limitadas sob outro nome. As pessoas casam-se porque uma delas tem um trabalho para fazer, a outra tem um número de ligações, portanto a mulher actua como um oficial de relações públicas enquanto o marido é um oficial de economia, para o descrever em termos de trabalhos concretos. Há mais coisas na vida do que isso. E o casal de Viagem em Itália é esse tipo de casal – pessoas que não têm nada para dizer um ao outro fora dos seus trabalhos, dos seus empregos, das suas rotinas diárias. Mais do que outra coisa qualquer, umas férias são a morte deles. Possuir uma quinta encantadora num dos mais belos sítios do mundo não conta para nada, porque já não sabem o que dizer um ao outro: se não falam sobre as cotações da bolsa ou sobre fazer este ou aquele negócio, a relação deles está acabada.”

Jacques Rivette escreveu um conhecidíssimo e citadíssimo texto sobre o filme de Rossellini chamado Lettre sur Rossellini, atirando logo ao início que “vocês não apreciam Rossellini. Não gostaram de Viagem em Itália. Tudo bem. Tudo bem, não. A vossa recusa não é assim tão segura que não procurem saber a opinião dos rossellinianos. Estes irritam-vos, inquietam-vos como se não estivessem de consciência tranquila com o vosso gosto. Que estranho procedimento!

“Mas deixemos este tom jocoso. Sim. Admiro especialmente o último filme de Rossellini (o último que vimos, pelo menos). Porquê? Ah, agora é que tudo se torna mais difícil. Não posso invocar-vos o arrebatamento, a emoção, a alegria. É uma linguagem que vocês não admitem como explicação. Mas espero que, pelo menos, a compreendam. (Senão, Deus seja misericordioso).

“Mudemos de tom mais uma vez para vos agradar. A mestria e a liberdade são palavras que vocês podem entender. Pois estamos perante o filme em que Rossellini mostra melhor a sua mestria e, como em qualquer arte, através do livre exercício dos seus meios. Voltarei a este assunto. Em primeiro lugar, tenho algo para vos dizer e que vos deve interessar mais… se existe um cinema moderno, ei-lo. Mas vocês ainda precisam de provas.”

Jacques Lourcelles dedicou uma entrada monumental ao filme de Rossellini no seu também  monumental Dictionnaire du Cinéma, escrevendo que é a “terceira das cinco longas-metragens de Rossellini com Ingrid Bergman. A riqueza do filme, a sua clareza genial, a ambição tranquila e imensa do propósito são daquelas que desencorajam a análise, sobretudo em poucas linhas. Respeitando a linearidade inevitável da narrativa cinematográfica (tão consubstancial ao cinema como o fluir da película na câmara), Rossellini descreve em círculos concêntricos uma realidade cada vez mais ampla.

No início da intriga e no centro dos círculos está um casal, um homem e uma mulher próximos pela nacionalidade e pelo meio social, profundamente separados pelo carácter e pela abordagem às coisas. Homem de negócios que não sabe fazer mais nada a não ser trabalhar, o marido não comunica de forma alguma com o mundo (estrangeiro) que o rodeia. A mulher, essa, comunica um pouco mais com esse mundo, mesmo que seja pelas suas frustrações. Frustração de crianças (enquanto as ruas da cidade parecem uma ode à maternidade). Frustração de saber e de cultura, que ela preenche como pode com as suas excursões e o que o seu marido apelida com desprezo de «peregrinações». Frustração mais geral de contactos humanos.

No segundo círculo há duas civilizações que se opõem, o Norte e o Sul: o Norte da hiperactividade e do «time is money», o Sul do farniente, da contemplação e da poesia (aos quais é sensível a personagem de lngrid Bergman). A civilização enquanto valor não está mais no Norte do que no Sul, sugere Rossellini, não há um dilema ou uma escolha a fazer entre os dois. Há uma união, uma síntese e uma harmonia desejáveis e de resto inevitáveis – a menos que o mundo chegue à ruína – entre as duas atitudes, os dois olhares perante a vida que representam o Norte e o Sul.

No terceiro círculo encontra-se a fronteira frágil e impalpável entre o mundo da intimidade e o cosmos, entre o interior e o exterior, entre a matéria e a graça, a banalidade quotidiana e o milagre. Nos últimos segundos do filme, as duas personagens sentem que essa fronteira é ilusória; eles experienciam que «tudo é graça» sem o formular. A serenidade estaria tanto fora como dentro, sugere Rossellini. Provam-no esses planos ditos subjectivos tirados do carro com que o filme começa, em que nada indica que estejamos separados da paisagem, em que se absorve a realidade como se respira, em que o subjectivo se confunde com o objectivo, e o espectador (quer se trate do público ou dos protagonistas) com aquilo que observa.

Se a arte do cinema consiste em contar uma história simples que absorve e contém gradualmente todas as histórias, e o espectador, e o mundo, então Viagem em Itália pode ser considerado como um dos filmes que exploram os poderes desta arte até ao seu limite extremo. Outra particularidade do filme: quanto mais o olhamos de cima a baixo, mais central e essencial parece, estando situado na encruzilhada das duas correntes fundamentais da história dos últimos cinquenta anos do cinema. Quais são essas duas correntes? Em 1942, sob a influência de Val Lewton, Jacques Toumeur aborda os géneros hollywoodianos com um novo olhar, um outro olhar. Começa pelo género do fantástico – Cat People. A novidade da sua abordagem reinventa e amplia o intimismo do cinema. No seu caso, intimismo significa uma viagem através das profundezas do ser das personagens. Ao filmar, trata-se de estar mais perto da pele e da psique das personagens ao mesmo tempo. Esta tendência vai caracterizar os filmes de Lang a partir de House by the River, os primeiros Preminger e os filmes mais tardios de Hitchcock, como Vertigo e Psycho.

Em 1944, a milhares de quilómetros daí, Rossellini acaba de sair como toda a gente do maior cataclismo que a terra conheceu. Com meios modestos, quer fazer a crónica dos últimos dias do antigo mundo. Ao fazê-lo reinventa o presente e o realismo no cinema. Normalmente, estas duas correntes, o intimismo e o realismo não se deviam encontrar. Mas se entra uma certa dose de realismo na nova forma de olhar de Jacques Toumeur, o intimismo acabará por se tornar parte integrante do neo-realismo uma vez que se trata aí também de seguir o mais perto possível as personagens, a sua evolução, os seus sentimentos. Esse intimismo do neo-realismo culmina em Viagem em Itália, filme cardinal em todos os aspectos, já que fala não apenas do Norte e do Sul enquanto pólos de civilização mas une a bricolagem genial e cheia de esperança do inovador artesanal à elegância perfeita e desiludida do esteta que não espera mudar mais nada no mundo. Essa elegância vem parcialmente do encontro Rossellini-Sanders. Se ele não tivesse tido lugar neste filme, poderíamos tê-lo achado improvável, e mesmo impossível. Tendo tido lugar, revelou-se plena de picância e de imprevistos no plano anedótico. Ingrid Bergman dirá ter visto George Sanders, completamente desconcertado com a forma de filmar de Rossellini, a chorar no seu quarto como um miúdo. Foi-lhe dito como forma de consolo pelo seu realizador: «Meu amigo, não é o primeiro mau filme que fazes, e certamente que não será o último…».

N.B. A versão original é a versão inglesa. A versão dobrada italiana é particularmente monstruosa. Tem pelo menos o mérito de sublinhar, acima de qualquer outra, a monstruosidade de toda a dobragem. Não aparece lá uma das melhores cenas do filme (Sanders a notar que toda a gente faz a sesta e não conseguindo fazer entender que quer um copo de vinho) porque era literalmente indobrável. A cena entre Sanders a a prostituta (Anna Proclemer), conservada na versão italiana, é totalmente absurda no seu texto. Sanders (ou melhor, o seu dobrador italiano) diz ao princípio não perceber nada de italiano e depois põe-se a falar com a sua interlocutora italiana, que compreende perfeitamente, num italiano não menos perfeito.

Biblio: argumento e diálogos publicados na revista italiana «Film Critica» n° 156-157 (1965). Decupagem (465 planos) publicada in «L’Avant-Scène» n° 361 (1987). Os diálogos aparecem em bilingue, inglês e francês. O texto das nove canções napolitanas que marcam o filme é produzido em apêndice. Ver também o capítulo 19 da autobiografia de Ingrid Bergman, em que ela lembra que o filme devia ter sido originalmente uma adaptação de «Duo» de Colette, cujos direitos já tinham sido vendidos. Ela evoca a angústia de George Sanders perante os métodos de rodagem particulares de Rossellini (ausência de argumento e de plano de trabalho, pontualidade inexistente, serões improvisados de mergulho). George Sanders, nas suas memórias, «Memoirs of a Professional Cad», Hamish Hamilton, Londres, 1960, que são uma obra-prima, dedica uma dezena de páginas à rodagem do filme. (acrescenta às numerosas excentricidades de Rossellini a que consistia em de vez em quando fazer corridas no seu Ferrari com o expresso Nápoles-Roma, que acabava sempre por ultrapassar). Por fim, deve-se ler o artigo de Jacques Rivette, «Lettre sur Rossellini», in « Cahiers du cinema », n° 46, 1955), que com o texto do mesmo autor sobre Hawks, «Génie de Howard Hawks», in « Cahiers du cinema » n° 23, 1953, marca o nascimento da crítica cinematográfica moderna.

 

Obs: Este artigo foi originalmente publicado sob o título Lucky Star – Cineclube de Braga | 114ª sessão: dia 11 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30, tendo sofrido ligeiras adequações na presente publicação.

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Categorias: Agenda, Cultura

Acerca do Autor

João Palhares

Natural do Porto, João Palhares editou os dois únicos números da revista portuguesa Cinergia, colaborando ainda com revistas estrangeiras como a italiana “La Furia Umana” ou a “Foco – Revista de Cinema”, do Brasil. Em 2015, fundou o Lucky Star com José Oliveira, cineclube em que também programa e para o qual escreve folhas de sala, colaborando ainda com traduções. Foi colaborador do site “À Pala de Walsh” entre 2012 e 2015.

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