A última longa-metragem do realizador Pedro Costa, Cavalo Dinheiro, trata-se de uma deambulação tão realista como expressionista pelas memórias de Ventura, que vai do terror e solidão vividos durante o 25 de Abril à descida pelo elevador que pode ser a purga de todos os seus males e de todas as suas dúvidas, pensando no belo título internacional que a sequência teve quando fez parte do filme colectivo Centro Histórico: Sweet Exorcist.
Em entrevista à Film Comment, Costa fala do envolvimento de “Gil Scott-Heron. Ele era um poeta, rapper e músico negro americano, muito, muito activo nos anos setenta, oitenta, noventa, e depois fez um regresso com um álbum. Foi o pai de uma data de rappers – bom, dos rappers politicamente conscientes. Eles devem-lhe tudo. E ele era muito parecido com o Ventura, fisicamente. Uma dia eu estava em Nova Iorque e pedi a um amigo que o conhecia, e disse: “Era óptimo pô-los a falar!” Porque o Ventura não fala inglês nenhum; e o Gil não sabia falar português. Então mostrei-lhe os meus filmes, e ele telefonou-me e disse: “Gosto disto. Vamo-nos reunir.” Ele ia tocar a Lisboa. Portanto eu fui ter com ele, propus-lhe [a minha ideia] e ele disse que sim.
“Era suposto ele escrever o que se vê hoje no filme – provavelmente a montagem com as pessoas no bairro, esta viagem através da noite. Era suposto essa primeira versão ser escrita por ele, com música dele, e talvez rodada no mesmo sítio… Ou talvez não. Mas tê-lo-ia como actor. Era assim que a primeira versão devia ser. Mas depois ele morreu. Isso foi à volta de dois anos. Esse foi o primeiro golpe. Portanto depois ataquei a sequência do elevador, que era bem grande e difícil por si. Filmámos isso durante três ou quatro meses.”
Carlos Melo Ferreira, que nos apresentou Juventude em Marcha a semana passada, escreveu no seu antigo blog que “assombrado no tempo é como Ventura nos aparece em Cavalo Dinheiro, o mais recente filme de Pedro Costa (2014). Conhecido de filmes anteriores, ele encontra a sua origem remota em Leão/Isaach De Bankolé de Casa de Lava (1994), o filme que, ainda antes da “trilogia das Fontainhas”, levou pela primeira vez o cineasta ao contacto com os cabo-verdianos. Agora doente dos nervos, Ventura encontra-se hospitalizado, e é pela sua identificação perante o médico, logo a seguir às fotografias de Jacob Riis (1849-1914) que estabelecem a linha de rumo (ou o fio de prumo) para o que se vai seguir, que o filme se inicia.
“É mesmo neste filme que, depois das curtas-metragens The Rabbit Hunters e Tarrafal (2007), se percebe melhor a sempre falada influência de Jacques Tourneur nos filmes do cineasta, pois é um assombrado, espectral Ventura que recorda o seu passado e faz Vitalina recordar o dela. Ele é mesmo uma personagem típica dos filmes de Pedro Costa, alguém que vive à margem, esquecido pela liberdade e pela democracia, presa da sua miséria e do seu abandono, entregue às suas memórias que por vezes o levam a situar-se em 1974-75.
“A escolha de personagens fora dos circuitos habituais no cinema e na televisão permite ao cineasta mais uma vez deambular com elas e a partir delas, desta feita não apenas pelos espaços físicos presentes mas também pelos espaços mentais – e é justamente isso que faz com que Cavalo Dinheiro seja o filme de Pedro Costa que mais directamente mostra a influência de António Reis.”
No livro que acompanha a edição em DVD de Cavalo Dinheiro (com tradução de Maria João Madeira), Chris Fujiwara pergunta “sobre o que é Cavalo Dinheiro? A dificuldade em responder a esta pergunta talvez seja já uma resposta: através da sua estrutura e do conteúdo dos seus diálogos, o filme de Pedro Costa investiga a possibilidade de falar sobre a experiência e tornar inteligível e comunicável algo que aconteceu. Não se pode dizer que o filme consiga tal objectivo a não ser de uma maneira paradoxal. Este paradoxo surge do facto de o espaço de Cavalo Dinheiro, um hospital que é possivelmente um hospital psiquiátrico, ou seja, um espaço que foi concebido para permitir algo como uma “cura pela fala”, já anuncia que aqui tudo e nada pode ser dito: é um espaço onde falar faz parte do dia-a-dia. Mas é precisamente porque tudo pode ser ali dito, que se torna ainda mais importante ter cuidado com o que se diz, unir as palavras àquilo que existe nas entrelinhas e evitar falar sem pensar.”
“Existe um relatório completo no filme: Vitalina lê o certificado de óbito do seu marido. Porque é que o faz? Talvez porque o essencial não esteja aí: são apenas palavras, apenas factos, uma espécie de vida que existe fora da experiência, o registo oficial. Aquilo que se experiencia, se é que pode ser expresso, apenas pode ser sussurrado aos poucos, envolvido em silêncio.”
Cavalo Dinheiro, (2014), de Pedro Costa, apresentação do filme por Rui Chafes
Cavalo Dinheiro vai ser exibido nos cinemas do Braga Shopping, amanhã, 24 de junho, e será apresentado em vídeo por Rui Chafes. Cavalo Dinheiro fechará o pequeno ciclo dedicado a Pedro Costa pelo Lucky Star – Cineclube de Braga.
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‘No Quarto da Vanda’, de Pedro Costa, uma ilha paciente e íntima cercada de fora por todos os lados
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