Literatura | Uma História Quase Verdadeira. Foi assim que tudo começou

Literatura | Uma História Quase Verdadeira. Foi assim que tudo começou

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É longa a distância entre o Minho que, um dia, me viu partir e o Minho que, longos anos depois, me viu regressar, e seriam necessários muitos dígitos para registá-la e outros tantos para anotar o tempo passado a percorrê-la. E quem pensar que não existe lógica em partir de um ponto para a ele regressar um dia mais tarde é porque nunca teve de separar-se da sua terra natal. Separar nem sequer é o termo correto, já que o coração de quem parte permanece para sempre ligado à terra onde nasceu. Terra que, para além de enlaçar o coração, prende-o com raízes difíceis de extirpar. Mas por vezes, como a planta que não se desenvolve e precisa de ser arrancada para mudar de lugar, também as pessoas, se a terra for estéril, terão de procurar sustento noutros sítios melhores. Nem sempre é fácil, mas quando a necessidade obriga e o peso da carga não é mais suportável, tem de fazer-se o que deve ser feito e não o que o coração manda: metemos pés ao caminho em busca de soluções, dispostos a pagar o preço da separação, decididos a enfrentar o desconhecido na esperança de dias melhores. Pode tardar, ou nem sequer chegar o dia do regresso, mas, à partida, todos levam na bagagem a intenção de que esse momento venha a acontecer. Por muito de bom que a vida nos ofereça durante a ausência, a nostalgia causada pelo afastamento estará sempre presente e é nas ocasiões, em que o moral está enfraquecido, que revivemos os momentos passados mais agradáveis, na companhia de quem mais gostamos.

Quem ainda não viveu a experiência de, por uma razão ou por outra, ter estado ausente por algum tempo e não sentiu aquela melancolia e saudade que a distância imprime no coração? Saudade inexplicável que a gente sente durante a ausência. Nesses momentos, se queremos regressar à terra por alguns instantes, basta fechar os olhos e nela pensar para até ela viajar e senti-la como se lá estivéssemos. É o que a gente faz quando está longe e a saudade aperta. Faz uma viagem no passado e finge que está feliz, depois reabre os olhos e regressa ao presente. É a forma mais cómoda de enganar o sentimento.

Todo o ser humano sente amor pela terra natal e sempre que dela se afasta, forçado ou de forma voluntária, sente que esse amor se torna ainda maior e que continua a crescer com o passar do tempo. Quantas vezes não pensámos, cá para nós, sempre que visitámos lugares onde são notórias as dificuldades das gentes que lá vivem: “Naquele lugar não viveria por nada de este mundo!”, e constatámos que aqueles que lá nasceram e moram são felizes e não trocariam aquele lugar por qualquer outro na terra.

É durante a infância que, a cada dia que passa, algo de novo acontece na nossa vida. Despreocupada e quase vazia, a memória vai registando acontecimentos e assimilando informação, enriquecendo o intelecto que, um dia, será a base onde assentará toda a nossa personalidade. Os alicerces são a parte mais importante de qualquer edificação e assim, com bases sólidas, qualquer ser humano consegue permanecer firme e determinado durante a esperada longa caminhada da vida.

Foi durante essa fase da minha meninice que a memória registou um sem número de recordações, que são como imagens nas páginas de um livro de banda desenhada. Umas, a cores, outras, a maioria, a preto e branco, onde o preto é predominante, mas que representam momentos de um passado rico em acontecimentos. Muitas destas lembranças, principalmente as mais antigas, aquelas que não têm pinta colorida, ficaram impressas com tinta indelével e jamais se obliterarão. São, por ironia, aquelas que mais gostaria de esquecer, as que mais resistem. São as páginas negras do livro que não posso arrancar para deixar apenas as coloridas. Porém, mesmo

que pudesse, penso que não deveria fazê-lo, pois fazem parte de uma história de vida que, sem elas, ficaria incompleta e não faria sentido.

Todas essas nítidas recordações que guardo da infância, algumas remontam ao tempo em que ainda não conseguia pôr um pé à frente do outro, são a prova de quão prodigioso o cérebro é e que se for excitado — fator essencial para o desenvolvimento do intelecto — pela curiosidade, mais se desenvolve e mais interligações de circuitos nos respetivos neurónios se processam. É o que dizem os entendidos nestas coisas e a prova disso é que aromas, sabores, acontecimentos, imagens e outras sensações verificadas em criança, permanecem gravadas na minha memória, e mesmo quando camadas sucessivas de milhares de outros acontecimentos vividos, sentidos ou presenciados, vieram sobrepor-se durante anos a fio, não conseguiram tirar-lhes o lugar, pelo que estas, sem qualquer esforço e a qualquer momento podem ressurgir com toda a frescura original. Obviamente que se deixarmos passar muitos anos sem apontamentos escritos, a tarefa para trazê-las de volta torna-se mais complicada.

Cedo comecei a ter necessidade de registar aquilo que me parecia relevante, numa altura em que tive a sensação de que a minha existência se tornaria numa invulgar sucessão de acontecimentos.

Recordo nitidamente que os meus pais, quando partiam para o emprego, me deixavam durante o dia inteiro aos cuidados de uma senhora bastante velhinha, que se limitava a ministrar-me os cuidados básicos necessários, e o resto do tempo colocava-me numa manta de ourelos pousada no chão, num pequeno espaço delimitado por quatro paredes e uma porta que dava para o exterior. O chão era em terra batida muito escura, dura e lustrada, que parecia encerada. Eu saía frequentemente da manta e percorria aquele pequeno espaço como um animal enjaulado. Para o exterior, que era a estrada nacional em paralelepípedo, não podia sair, dado que a diferença de nível mo impedia, teria de subir um degrau bastante alto.

Esta etapa da minha vida ficou-me na memória, talvez, porque na altura tinha um pequeno problema físico: os dedos anelares e mindinhos permaneciam permanentemente dobrados sobre as palmas das mãos — mais tarde, disseram-me que nascera assim. — Ao gatinhar sentia desconforto, mas aquela senhora idosa pegava nuns pauzinhos que atava aos dedos com umas tiras de pano, forçando-os, pouco a pouco, a abrir e a endireitar-se. Para mim, era um suplício, pois permanecia assim o dia todo, mas o resultado foi que as mãos recuperaram o aspeto normal, com os respetivos dedos nos seus respetivos lugares. Acontecimento banal, comparado com o sofrimento de muitas crianças que eram afetadas pela poliomielite e outras doenças ruins, algumas desconhecidas, mas que viria a ter uma importância significativa na minha vida de adulto. A atitude daquela senhora foi a lição de que não nos devemos conformar com o que a mãe natureza nos dá. Se algo não está bem, devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para corrigi-lo.

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Obs: “Foi assim que tudo começou” é o 2º capítulo do romance Uma História Quase Verdadeira, de José Alberto Salgado, editado em 2015 pela Chiado Editores. O escritor, nascido em Joane, Vila Nova de Famalicão, e aí residente, prepara atualmente a edição do seu segundo trabalho.

 

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Categorias: Cultura

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