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Dia 1:

Programei um ser. Autónomo e livre. Dei-lhe o poder da escolha.

Chamei-lhe só “animal” e soltei-o num mundo criado também por mim. Com ciclos e ritmos minimalistas como convém à programação comportamental do indivíduo.

Os ciclos provocam embates orgânicos, impelem à sincronização com o meio de forma cadenciada. A Noite e o Dia obrigam ao sono e à vigilância. As épocas de frio e calor convidam ao abrigo ou à aventura. Épocas de criação e de destruição. Marés que sobem e descem. Tudo bem sincronizado.

Corri o programa e deixei-o ser.

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Dia 2:

Adequação em marcha.

Habituou-se rapidamente a um ciclo de dor e prazer, de tensão e de libertação da tensão que o faz balançar como uma corda que está ora esticada ora solta.

Ele próprio está a tornar-se cíclico. Em rotina. Repetitivo.

Talvez se tenha sincronizado demasiado com a programação do mundo.

Fiz upgrade para incitar à dinâmica. Estimulei a perceção do meio por via de maior “poder de observação” e clonei-o várias vezes para ampliar os efeitos.

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Dia 3:

Não está a correr como esperava. Inicialmente confuso começou por observar-se a ele próprio e nem sequer se via. Fez o mesmo comigo. Confesso que cheguei por breves momentos a pensar que me tinha encontrado. Mas não.

Vou esperar.

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Dia 4:

Já observa os outros mais parecidos consigo (em forma e comportamento).

Geraram-se alianças e formaram-se grupos para se adaptarem à cadência dos ciclos do mundo. Começaram a criar ferramentas; construções de abrigos; etc.

As dores e o prazer passaram a ser também coletivos.

Usou capacidade de observação que lhe conectei para apurar que os mais fortes submetem os mais fracos.

Em conjunto, assimilaram conceitos da ideias de força e quantidade. Incorporam ambas em tudo. Criaram hierarquia de valores com base nas novas sensações que vão descobrindo. Nos opostos dessa escala colocam o prazer e o sofrimento. Chamam-lhe certo e errado, alguns bem e mal. Uma matriz de interação que se assemelha aos ciclos do meio que eu criei. Mantém-se como esperado o ciclo de tensão e libertação de tensão que gera o movimento.

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Dia 5:

O meio está definitivamente a determinar a interação dos seres. Os ciclos estão a ser assimilados e projetados na forma como os indivíduos percecionam o próprio programa (dualidade e oposição).

Contudo já não se sintetizam na adaptação ao meio. Já o imitam. E recriam-no frequentemente. Nos sons. Nas cores. Nas vibrações. Em tecnologia. Em quase tudo.

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Dia 6:

Parece estacionário.

Limitam-se a replicar o meio em toda a dinâmica da sua existência.

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Dia 7:

O que parecia repetitivo e estacionário afinal pode não o ser.

A iniciativa de criação de regras de interação social com base na força e no prazer estão a criar uma autorreprogramação permanente dos indivduos!? A própria criação a reprogramar-se!?? Não pode!! O risco da autodestruição do programa está perto do nível de alerta e pode acentuar-se. O ser tem capacidade para imitação dos ciclos da natureza mas não conhece a fórmula do equilíbrio. Talvez seja vírus.

Já corri todos os códigos mas nada me parece fora de contexto.

Reflexão para memória: Numa primeira fase adaptaram-se ao meio. Depois imitaram-no, sem qualquer noção de equilíbrio. Tinham outras opções. O que terá provocado a tendência de reprogramação autodestrutiva?

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Dia 11:

Novo upgrade realizado e dispositivo incorporado.

Incremento de autoperceção nos seres. Maior poder de observação individual e do meio envolvente.

Aumento de capacidade de observar ciclos, opostos e a dualidade sem qualquer julgamento baseado na sua própria hierarquia de valores.

A aplicação NEFA foi iniciada para incremento da observação do eu fora do animal.

Criadas dificuldades comuns do meio para acelerar upload.

Ativado.

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Dia 13:

A criatividade tecnológica está intensa e com evolução exponencial.

Os mais fortes já aprenderam a manipular o hardware orgânico de outros indivíduos.  Autorreprogramação faz-se agora por via tecnológica afetando diretamente os sensores dos organismos. As regras de interação social passaram a ser efeito, em vez da causa secundária da autorreprogramação.

Iniciado aplicativo de análise de hardware. Tempo estimado de conclusão do processo:  6 dias.

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Dia 19:

O Relatório de Diagnóstico de Hardware Orgânico (RDHO) mostra que a dopamina, regulador da tensão dor-prazer, está em manipulação permanente por algumas das entidades e totalmente dissociado do meio natural e dos seus ciclos.

Verifica-se avaria de um conjunto de conjunto de sensores decorrente da aniquilação de emoções tidas, na hierarquia de valores de grupo, como negativas e erradas (ex: angústia; tristeza; etc.). A situação origina a lentidão no  mecanismo de observação do mundo e da aplicação NEFA.

Poder de auto-observação fortemente enfraquecido pela controlo da dopamina e do culto da positividade…

… não vejo soluções…

mayday… mayday…  MAYDAYYYY!!!!!!

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