Presépio em Nine: em nome de quem vê a neve preta

Há um conhecido conto de José Saramago, tornado residente em antologias temáticas do Natal ou nos manuais escolares do ensino básico, que tem como título “História de um muro branco e de uma neve preta”. Afigura-se como um bom ponto de partida para cumprir aquilo que mais prontamente se espera das boas histórias: a promessa de devolverem o animal humano à sua própria humanidade, aproximando-os, como pensava Heidegger, dessa clareira do ser, o abrigo de uma insondável essência que iluminaria o que genuinamente somos. A breve narrativa conta o seguinte:

Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira». Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. […] [O]s desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?” (pp. 286-7).

Fazendo uso dos truques narrativos do costume, o narrador deixa a pergunta no ar uns instantes, tenta suster-nos a respiração, traçando contornos secundários do ambiente que se enjeita no espaço da intriga. O desenho em questão foi pintado por uma personagem identificada apenas como “a Menina” – e este aparente anonimato, a ausência de referenciais específicos, contribui para tornar o texto mais universalmente permeável às projeções de qualquer leitor, no modo como se confia à palavra a vocação alegórica para nos fulminar a consciência. No fundo, todos podemos ser aquela Menina e, como ela, responder assim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu” (p. 287).

O timbre desta resposta parece, de alguma forma, avizinhar-se do conceito por detrás do Presépio existente em Nine, junto ao Largo de Santo António. É da responsabilidade do Agrupamento de Escuteiros 1046, no âmbito da organização das denominadas “Festas do Menino”, que integram todas as iniciativas da quadra natalícia realizadas na e para a comunidade paroquial.

.O conceito deste presépio partiu da visão de um dos dirigentes do movimento escutista: usar o espaço da capela de Santo António para recriar a tradicional cena da Natividade e, em simultâneo, honrar as pessoas diretamente afetadas pela tragédia dos incêndios neste último verão. O panfleto disposto à entrada, e que cada visitante pode levar consigo, introduz desta forma o imaginário do Presépio: “Este ano, o flagelo dos incêndios assolou o nosso país de forma tragicamente expressiva. Se outros verões tivemos que também arrasaram com casas inteiras, animais e vidas humanas, nunca como este ano a Natureza vincou a sua indiferença ao desespero de tantas pessoas que, num ápice fatídico, ficaram sem nada – e até sem a própria vida. Foi a nossa impotência e fragilidade contra a fome implacável do fogo.

De facto, a imagem exterior da Capela, totalmente cercada pelo negrume de madeiras queimadas, atrai imediatamente o olhar de quem passa, sobretudo de quem já conhece a fisionomia austera do espaço no seu estado habitual. Ao entrar na espécie de clareira que ali se forma, o visitante tem à sua frente um breve percurso a fazer, ladeado por ramos secos e crispados, com o aspeto aparentemente pouco aprumado da ramagem, a par das cinzas espalhadas pelo chão. Afigura-se, assim, como uma tentativa de inscrever no nosso corpo, na nossa sensibilidade, o flagelo dos incêndios e as mortes provocadas, com o nome de Pedrógão Grande assomando imediatamente à nossa memória, mas sem esquecer todos os outros locais e regiões que enegreceram terrivelmente o nosso país. Como se lê no conto de Saramago: “O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas” (p. 285). E a ilusão da nossa espécie passa por continuar a crer que toda a natureza, incluindo o lume, é subordinável aos nossos caprichos, é domesticável a favor do nosso conforto, do nosso êxito, da nossa arrogância antropocêntrica. Mas o fogo, insista-se, mostra-se “indiferente, alheado”, sempre ávido de recomeçar “o seu eterno ofício de fabricante de cinzas”.

Trazer para a quadra natalícia a lembrança dessa inquietação interior – a forma como, num ápice, o legado de uma vida, de todo um trabalho, é destruído pelo fogo, desamparando famílias inteiras – pode, à primeira vista, soar como uma boa intenção mal sucedida. De facto, como bons ocidentais que somos, somos impelidos a assumir a quadra natalícia no seu formato postal, com os vermelhos garridos, as paisagens nevadas, mais um coro de anjos a nimbar-nos com mesas fartas, prendas a rodos, os hinos da reconciliação universal e de todas as boas intenções da praxe – são esses, como sabemos, os produtos mais afins ao fluxo do capital, com vocação decorativa para tornar irresistíveis as montras das lojas (e as montras ambulantes em que, a bem ou mal, também nos vamos tornando).

Acontece, porém, que o tom deste Presépio em Nine reclama por uma certa sobriedade, procurando que sobre a dor de uma tragédia recente não recaia uma máscara atenuante, que é uma outra forma de eliminar essa dor no espaço público ou na memória coletiva. Inscrever esse momento que nacionalmente nos deixou estarrecidos significa, igualmente, reclamar por um sentimento de responsabilidade cívica mais agudo, mais forte, o que torna também mais urgente a importância de não se proferir palavras como “esperança” ou “responsabilidade” da boca para fora. Esperança deve ser, na verdade, um gesto ético, eticamente comprometido com o momento presente, uma forma de não o desbaratarmos (olhando para o futuro como o único tempo possível, esvaziando o presente da sua significância afetiva), mas de assumirmos este momento na sua integridade, na sua substância. E a vida, o que nela é irreversivelmente frágil e transitório, passa a ser compreendido como algo de essencial, único e irrepetível.

Por isso”, continua o texto do referido panfleto, “quisemos que este Presépio fosse ainda mais especial. Se o nascimento de Jesus é o símbolo da redenção universal por que todos ansiamos, e se a imagem do presépio antecipa, no nosso coração, o enlevo da paz, a fraternidade e a alegria genuína de vermos, no fim de cada ano, a promessa de um verdadeiro recomeço, sobretudo, para os que mais sofrem, – sentimos que o Presépio de Santo António apelava a uma missão de esperança tornada mais urgente pelas circunstâncias vividas este ano. Desejamos, assim, que o breve percurso realizado neste espaço acompanhe o lento, mas gradual, caminho que das cinzas – do terror, da angústia, da desolação – nos conduz à esperança e à vida.

O Agrupamento de Escuteiros adianta que uma parte significativa das contribuições no âmbito das “Festas do Menino” reverterão para o projeto CRIAR BOSQUES, lançado pela Quercus. Colaborando com várias entidades e voluntários, este projeto destina-se a recolher sementes para recuperar e cuidar de bosques com espécies autóctones, árvores e arbustos originais da flora portuguesa. Deste modo, segundo o mesmo texto, o imaginário deste Presépio deseja “fazer renascer das cinzas a floresta do nosso país”.

Fez-se silêncio”, conclui o conto de Saramago, “e a Professora pensou […]: «À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito de uma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?»” (p. 287).

E é interiorizando esse silêncio, a dignidade que ele nos incita a restituir dentro de nós, que a simbologia da Natividade mais devém expressiva, tanto para crentes como para não crentes. E crentes ou não crentes, cada qual na sua solidão, no modo como cedemos as defesas diante de quem mais queremos ter por perto, acabamos sempre por sentir um toque de anjo semelhante ao deste poema de Maya Angelou:

Desacostumados da coragem

exilados do prazer

vivemos enrolados em conchas de solidão

até que o amor deixe o seu alto templo sagrado

e entre na nossa visão

para nos libertar.

O amor chega

e na sua esteira vêm êxtases

velhas memórias de prazer

e de dir.

Se formos corajosos,

o amor atira fora as correntes do medo

das nossas almas.

Desabituados da nossa timidez

com a onda de luz do amor

passamos a ser corajosos

e a ver

que o amor custa tudo o que somos

e viremos a ser

que só o amor

nos liberta.

Referências:

José Saramago, “História de um muro branco e de uma neve preta”, in Vasco Graça Moura (org.), Gloria in Excelsis. Histórias Portuguesas de Natal, col. Mil Folhas, Porto, Público, 2003, pp. 283-288.

Maya Angelou, “Tocada por um anjo”, in Jorge Sousa Braga (org.), Sombras Brancas. Setenta e sete poemas sobre anjos caídos de outras línguas, Lisboa, Língua Morta, 2016, p. 128.

Página de Facebook do Agrupamento de Escuteiros 1046 de Nine:

https://www.facebook.com/agrupamento1046nine/

Mais informações sobre o projeto CRIAR BOSQUES da Quercus:

https://criarbosques.wordpress.com/

Entrevista do Agrupamento 1046 concedida à rádio TSF:

https://www.tsf.pt/sociedade/interior/um-presepio-de-madeira-queimada-9003502.html

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Imagens: Diogo Martins

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