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Mas afinal quanto anos tem?
Eu não tenho anos, albergo em mim todos os anos. Digamos que sou uma espécie de qualquer coisa que ao tempo pertence. No fundo sou todo o tempo, sim, ao ser o tempo sou tudo aquilo que me permito ser: nada. E ao ser nada sou tudo: uma pontual e rítmica forma de ser, um sonho, um sistema de mil complexidades, soberano e frágil, tal como a própria vida, essa mesma que avança agora atrás de si – cuidado! – contrária às horas que ditam os contadores oficiais do mundo. Sou algo que a noite supõe, esse compasso de tempo sem hora, essa ígnea vontade pelas coisas, esse cansaço-dom que tudo suporta e equilibra. Sou este enorme vazio por tudo. Um transumante desta inebriante roda que sempre inquietou o espírito mais sensível – penteou com cuidado o cabelo. Alguém que se nega ao que lhe foi imposto. Isto propriamente da vida, da vida imaginada, este imaginário colectivo que todos julgam mover-se por essa coisa chamada verdade. A vidazinha que cada um leva dentro de si por acreditar que foi essa que lhe atribuirão à nascença e que mais vidas não poderão ser – silenciou-se por um momento… – Mas eu não tenho anos. Não tenho e nem saberei dar-lhe um número por muito que tente elucubrar uma genealogia que se cinja aos limites do real.
Veja:
…………………………………………………………… contas as horas que a vida tem
……………………………………………………… sem saber quanta vida numa hora vem
Ah, é poeta então?
Sou português, meu caro. No entanto não quero com isto dizer que não tente representar-me como um autor de desconfianças. Um inquilino de mim mesmo. Um poeta com todas as contas por pagar. Um empregado das palavras, portanto. Alguém que escreve de olhos fechados, sem aquecimento prévio, sem pensar, claro.
Mas isso tem algo de contraditório… é português ou é poeta? – insisti
Ser poeta está obviamente naquilo que eu considero ser digno de me representar como português – olhou-me sério nos olhos… Mas como não hei-de eu ser contraditório se a vida o é também? Isto é muito mais complicado e sensível do que pensa, homem. Ser português foi condição que naturalmente me obriguei por natureza. E estudei muito para isso! Estudei aquilo que me faltou de algo que nunca quis deixar de ser pela minha vontade de querer ser tudo, os outros, neste caso. Parece-lhe confuso? – tudo parecia de facto muito confuso. Refiro-me ao meu lado invisível, a este disfarce do que poderia ter sido, esse outro eu capaz de ser tudo por um só dia: um mestre de barco de rota longa, um amante de mulher sem corpo, um pica de um comboio para o fim da linha, um sub-chefe de uma corporação de sonhadores, um empregado de mesa… ah sim, um empregado de mesa com aquele ritmo alegre de atender os clientes, funambulista de mesas para o balcão sem fundo, com 6 dias pagos mais um subsídio para alimentar a vizinhança do 3º direito; um empregado de mesa como dita os ritmos do mundo, com força para enfrentar o imperativo das horas irreais, livre e insubmisso, concreto e vago; e ao segundo dia com um despedimento por justa causa pelo cansaço que tudo lhe subtrai.
Parara agora as palavras e no silêncio que ficou no ar olhou-me, de novo, com aqueles seus brilhantes e redondos olhos.
No entanto – insistia de novo – de uma coisa tenho a certeza: os meus pés não têm culpa dos crimes cometidos nas salas de reuniões deste país. E eu jamais serei uma mera proposta de qualquer coisa que não foi aceite em assembleia. Não, irei continuar a protestar muito ao meu redor, a bater no quadrado de chão que me é permitido – como aquelas crianças que com teimosia não querem tudo o que lhe dão – irei continuar a simular tumultos contra mim mesmo, enfrentar-me ao mais vil que de mim há.. e ser rapidamente dispersado por falta de condição física. Lá no fundo, cansar-me-ei de explicar que não vim cá por ser fim-de-semana!… – voltou a silenciar-se por um momento. Mas quanto a ser poeta, deixa-me dizer-lhe que isso foi algo que inventaram um dia para eu poder passar na porta de um bar onde só era permitida a entrada a estrangeiros, estrangeiros, diga-se, com um bom comprimento de onda, com um bom nível de altura.
Imagino então que esteja desempregado? – perguntei
Desensolto.
Como assim?
Alguém que é solto, que vive à solta, em liberdade. Ou seja, um desempregado do mundo não propriamente de mim.
Vive muito então?
Absolutamente. Isto no fundo não é um problema de portugueses nem de poetas mas sim de quem fuma muito, claro está.
Apertei-lhe a mão com calma e ele perguntou-me as horas como se atrasado para um qualquer encontro estivesse. Não tenho horas – respondi. Deteve-se. Apontou num papel algo que retirara do bolso das calças e saiu pela porta como se já não tivesse tempo, como se já não existisse, como se fosse um poeta muito português.
Imagem de destaque: James Turrell: Bridget’s Bardo
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