Em Kalahari, Luís Serguilha expressa um “tratado de estética” labiríntico como a vida, universal e intemporal. É um livro a ter em conta para o estudo da poesia contemporânea portuguesa. Explora um tema filosófico com vários tentáculos, como o cosmos, numa perspectiva aberta sobre o exterior em que tudo se conecta como líquido que escorre e se mistura sobre tudo e com tudo, incluindo o eu pensante. Tudo se abre ao perigo, através das ressonâncias do deserto, do estrangeiro, do erro, do fracasso, da incompletude, da transformação onde nada é dito e há um estranhamento, sem entrada e sem saída, em que tudo desaparece. A obra esboça o triângulo concetual Loba-Covil-Uivo: A Loba, como criatura pensante, o Covil, enquanto representação simbólica do Planeta, o Uivo, conforme plenitude poética primordial.
Neste livro há um encontro em forma de transe com a totalidade da existência. O autor metamorfoseia-se num espírito rebelde, mistura-se nos elementos em turbulência que fazem parte da vida. Vemo-nos no espelho do devir. Tudo é orgástico no sentido em que nos derretemos e fundimos no todo. O escritor renasce como veículo de códigos, elo de ligação entre povoamentos, camaleão que se metamorfoseia integrando-se no mundo, diluindo-se, infiltrando-se. O poeta, através da sua obra, procura incansavelmente a desmedida, a voz do vazio. Move-se entre as sombras, ritmos e energias onde explodem de forma sistemática as palavras de espanto e questionamento. A escrita acontece como encruzilhada que provoca o erro, o inacessível, como se através da palavra, o acesso ao oculto fosse permitido, mesmo nas tentativas de descrição da diversidade e do caos, no jogo incessante do acontecer. A palavra metamorfoseia-se em grito universal originando ecos.

Explorar o mundo com energia inquieta
Os conceitos, para o poeta experimentalista, baralham-se tal como num monte de cartas manipuladas ao acaso. Mas seja qual for a posição em que se situem, os conceitos voam permanecendo ligados entre si, como se a linguagem em miscigenação fosse um meio de expressão do real, um pensamento em total liberdade, caindo sempre no paradoxo do seu limite, uma vez que a palavra em si é impotente, incapaz de expressar o envolvente. A viagem poética não se submete a regras. É movimento, som, rutura e efervescência. Luís Serguilha inventa um novo vocabulário trocando palavras e significados. O sentir poético assemelha-se à ascensão do material magmático como “lahars”, avalanches, fluídos, materiais vulcânicos, alta densidade, fogo. Misterioso e imprevisto, o poeta expande-se num mundo absorvendo-lhe as características como estrangeiro, investigador, explorador, entusiasta, labiríntico, tentacular, como lava vulcânica que corre no labirinto da vida, traduzido numa energia inquieta.
Grécia Antiga e Nietzsche, as mais fortes influências de Serguilha
Nota-se claramente a influência de Serguilha pelo pensamento grego pré-socrático, aparecendo os nomes de Anaximandro e Anaxágoras. O autor sofre influência significativa de Heraclito. O conceito de “devir” cujo significado, “vir a ser”, um conceito pré-socrático, explica os estados dinâmicos de movimento e a metamorfose, exaltados ao longo da obra como estado permanente da existência. O poeta está impregnado da filosofia de Nietzsche quando, no baralhar dos conceitos, traz à superfície um mundo dionisíaco onde o estado apolíneo não tem lugar.
A Loba, o Covil, o Universo, o Homem
A Loba assemelha-se ao espírito do poeta. É percepção omnipresente, aguardando e vigiando, em estado de alerta. Pressente o caos, a instabilidade e a contaminação das sombras criadoras onde os opostos se digladiam em rituais de acasalamento. A caminhada da Loba é a evolução dessa consciência reflexiva sobre o mistério da vida. Ela tem a primeira perspetiva do conhecimento sobre a incerteza. Sabe que os elementos que constituem o cosmos são os mesmos que integram os corpos. Tudo está em constante devir. Caracterizada pela metamorfose, a Loba transfigura-se, emaranha-se e lapida-se num assombro irresistível.
O covil é o prolongamento do cosmos. Ele move-se. É ao mesmo tempo zona de solidão. É do covil que surge em transferência o corpo como pura energia. O covil acontece como um jogo dionisíaco, onde o holismo se liga a uma estética movediça. Há um abismo, uma aventura libidinal onde a destreza e a devastação vocabular sobrevêm. O covil é um estimulador das transmutações das trajetórias, um encadeamento. Os escritores, na sua estranheza, espanto, turbulências e secretismo, constroem o covil em movimento. O covil reconstrói-se com a matemática, escrita, dança numa perspetiva estética. O mundo covil é uma ilusão dinâmica arquitetónica.
O próprio universo uiva. Ele é a expressão do indizível. O uivo resiste entre o ranger do planeta e a linguagem humana. O uivo e a voz renascem mutuamente. O uivo é autónomo contra o domínio, sendo lugar vibratório. O grito indomável é encenação da experiência, exaltação do mundo, geometria da desordem, deslizamento, destruição, inclinação, queda, transferência e evasão. São instabilidades, mutações multiformes, estranhamentos, deslocações, fissuras e acoplamentos. Dá-se o confronto dos elementos e neste assombro há povoamentos de metamorfoses abissais e transmutações onde tudo acontece e nada é. O paradoxo e absurdo da existência humana acontecem nas lacerações contraditórias, nas alucinações, enquanto o uivo sibila no espanto.
O Homem metamorfoseia-se acompanhando a transformação do Mundo, do Cosmos e dos seres animais, vegetais e o próprio espaço molecular. O homem insere-se no espelho da transmutação dos elementos, dos átomos, da luz e do relógio geológico e lunar. É o reflexo do instinto dionisíaco dos seres, das guerras, conflitos, alucinações, loucuras, hipnose e transes. O homem acontece como uma criatura fecundada na necessidade e adversidade e na força de ligação entre todos os elementos. Percutor do grito/lava, do assombramento, incredulidade na natureza do espaço biológico, zoológico, arqueológico, geológico e vulcanológico.
O Homem ilimitado
O Homem histórico, social, mitológico, guerreiro, caçador, arquiteto, cientista, poeta, filósofo surge neste contexto. O homem pedra, o homem metal, o homem computorizado, ator no teatro trágico da vida. O homem, criatura sem ligação alguma aos sentimentos, ao amor, porque o próprio amor adquire uma outra nomenclatura como conexidade, vínculo, mutação, passagem, agregação. O que o Homem faz é efetuar aproximações representativas do Ser. Mas ao descrevê-lo, limita-o. E o Ser não pode ser limitado.
SERGUILHA, Luís – KALAHARI. São Paulo: Ofício das Palavras. Rua Capote Valente 1232 11-3473-4674 – Vila Madalena 05409-003 SP 2013