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Frank Colmi de José Miguel Braga ou as sismografias do “eu”

 

 

Na hora certa de, publicamente e pelas melhores razões, invocar o nome de um amigo e de lhe dedicar umas boas palavras, eu pelo menos não falho. E aqui vão os meus parabéns ao meu velho “compagnon de route” José Miguel Braga pelo seu último livro, “Frank Colmi”. Há entre nós uma amizade feita de muita cumplicidade nos territórios da arte e da cultura, diria até, convocando Goethe, muitas ”afinidades electivas”. Durante mais de 25 anos fomos colegas na mesma escola (a Alberto Sampaio, aqui em Braga), à qual demos muito e do nosso melhor, colaborámos estreitamente na revista Defacto, no Teatro e noutras cenas e, sobretudo, mantivemos uma bela relação de amizade que vem de longe (a fotografia prova-o), regada por excelentes vinhos, deliciosas almoçaradas e grandes conversas. O Zé Miguel teve a gentileza de me dedicar (e ao querido Alberto Peixoto) o seu “Adelita”, que apresentei na Feira do Livro de Braga, e me convidar pata prefaciar a sua mais recente publicação literária, este delirante “Frank Colmi”, cuja leitura aconselho vivamente. E é esse prefácio, que em boa hora escrevi e que penso estar à altura da obra, que vos deixo no desejo de que vos aguce o apetite para a fruição deste livro de santa loucura. Ora, cá vai:

Frank Colmi de José Miguel Braga ou as sismografias do “eu”

À hora que escrevo é noite. Frank Colmi deve andar por aqui a rondar-me o teclado, a insinuar-se na minha escrita. Paira no ar um cheirinho a cerveja belga, só pode ser ele. Sinto um bater de asas, deve tê-las nos calcanhares, ou não fosse Hermes a sua divindade de eleição. Naquele estilo de “vou ali e já venho”, ele é ir e voltar, aparecer e desaparecer, estar e não estar. Em modo de neutrino, ninguém o vê, mas a boa gente da Banda sabe quem ele é. “To be or not to be”, deve ter tatuado isto na testa. Ah, mas olhando melhor, leio “to be and not to be”. É o gato de Schrödinger.

Frank repousou agora. Está cansado, deve ter passado a manhã a jardinar ou alongou demasiado o seu habitual passeio citadino de sábado à tarde. Já que recolheste as asas, meu caro, toma lá um chazinho de tília. E diz-me, Colmi, porque andas a perturbar o sossego do meu amigo escritor José Miguel Braga? Não, não ando nada! Andas, sim senhor! Eu espreitei a pasta dos textos que me pediste para lhe entregar. Não te lembras, seu aluado? Querias publicar um livrinho, não é? Pois aí o tens, delirante, como tu gostas. Agora, zarpa, deixa o meu amigo em paz, que ele tem talento que chegue e sobre para novas aventuras literárias.

E zás, Frank Colmi foi-se, naquele ar que se lhe deu. Estarei então mais à vontade para escrever umas notas sobre este livro estranho, mas entranhante. E dir-me-ão: quem é esse tal Frank Colmi? Folheando as páginas do livro, vai-se sabendo que é uma “espécie de terrorista em modo de alfazema”, um “senhor de teorias tão inauditas e desavindas” e, em todo o caso, “um herói” respeitado pela Banda, desde que apareceu pela primeira vez num ensaio de teatro. Ensaiava-se então “Tudo Voa, Gente”, peça que voou para dentro deste livro, pela simples razão de que também nela se subentende o fantasma Frank, essa insinuante personagem que confessa gostar de se sentir “aluado, enluarado, lunestático e luasínico”. Ai esta gente da noite!…

Durante anos, enquanto director da revista escolar Defacto, vinham-me parar à mão crónicas dessa misteriosa personagem apadrinhada pelo José Miguel Braga (daqui em diante JMB). Algum heterónimo teu a querer ser ele-mesmo? Algum alter-ego teu? Ui, não! Nada de psicanálise, é só uma personagem que me habita e também me escapa, um voo, um vento qualquer que passa aqui por dentro, e “vou ali e já venho”. A explicação satisfaz, caros leitores? É só um tiro de partida, que ainda vou fazer mais alguns disparos.

Este livro, caros leitores, é da outra margem. Não por acaso, escrito por um homem do Teatro, dotado de uma invulgar capacidade de efabular, de inventar personagens e narrativas, cenas e cenários onde a imaginação – a louca da casa, como lhe chamou Teresa de Ávila – trabalha em todas as direcções, desafiando convenções e expectativas “bem formadas”. Estamos diante de um pantagruélico banquete de palavras, de uma capacidade extraordinária de brincar com elas, subvertê-las, criar dobras e desdobrá-las, multiplicar e desviar os sentidos, numa gostosa e bem articulada justaposição de diferentes níveis de discurso, do erudito ao popular, do registo cult ao da tasquinha ali do lado. E nem a ciência nem a filosofia faltam à chamada.

Usando a terminologia de Roland Barthes, entramos aqui no território do “terceiro sentido”, a obtusidade fintando a obviedade, com uma espécie de contra-narrativa sobrevoando a narrativa, sem a eclipsar, antes estruturando-a “de uma outra maneira”. Isto leva-nos a uma bela família literária, de Sterne a Joyce, de Mallarmé a Lautréamont ou de Jarry a Ionesco. Este livro, inteligente e bem escrito, é adoravelmente louco. Podia boiar à vontade em várias águas: as de Dada, as do Surrealismo, ou mesmo as da Patafísica. Podia, mas só vai molhar os pezinhos a essas águas bentas e inspiradoras, logo desandando daí para fora, alçando as asas para outros voos e paisagens que quer serem as suas, num território muito bem mapeado, onde a ordem apolínea e a embriaguez dionisíaca trocam piscadelas de olhos.

Não faltam por aqui alogismos, aporias e nonsenses, todavia inscritos numa certa ordem do discurso que, às vezes parecendo (divertidamente) “séria”, “lógica” e “normal”, ao operar com os melhores artifícios estilísticos do cânone, logo os desmonta para nosso gáudio e prazer. Sem que, em cada desconstrução, a “obtusa” arquitectura narrativa se desmorone ou sequer vacile. É obra!

Nem quando, em se tratando de quem é quem na narrativa diegética, as cartas fiquem todas baralhadas, sem sabermos exactamente quem está a tomar conta do leme narrativo: se é Frank (antes de ser Colmi ou acrescido dele), se é o regente da Banda, o senhor Fernando Mocho, conhecido coleccionador de objectos representativos da avezinha da classe “strigiforme”, ou mesmo, uma personagem de ocasião que entenda pôr ordem na embarcação. Um festim heterodiegético!

Como ler este livro, como entrar na louca aventura que nos propõe? Desarmados e em plena inocência, meus amigos. A alminha, o coração e a mente bem abertas, tudo quem somos dispostinho a se deixar banhar nesta louca cascata de palavras e imagens, como nos nossos estados oníricos ou nos nossos melhores devaneios. Há que percorrer as páginas deste livro, encostando ao nosso instruído olhar o da criança ou do bom selvagem. Não se procurem aqui razões, explicações e conclusões que, no reino de Frank, frankamente não as terão. “É extremamente importante que a arte seja injustificável”, disse um dia o meu admirável Robert Rauschenberg. Estamos na ordem do puro fascínio: desafiem-se a si mesmos, caros leitores. Et voilà!

Temos um banquete de outra dimensão. E aqui vai o cardápio: primeiro chega a “A Banda”, uma entrada suculenta onde se dará o fenómeno da aparição de Frank; para aconchegar, vem o caldinho “Urânio Boavida”, personagem que o JMB me segreda ser eu mesmo enquanto fiel depositário da obra de Frank publicada na Defacto e com a qual pretende oferecer à freguesia “um livrinho engraçado”; chegada a vez dos pratos quentes, a oferta é generosa: “Frank à solta”, “Sequência de Frank” e “Nascimento de Colmi”, a tripartida odisseia da personagem central da narrativa; por fim, saboreiem-se as sobremesas: as “Cartas ao Director”, que Frank dirigiu à Defacto, e “Tudo voa, gente!”, a peça de teatro que a Banda ensaiava aquando à aparição de Frank.

Podíamos espreitar já os ingredientes e temperos do apetecível menu. O Chef não faz questão de fazer segredo, porém, é melhor que sejam os nobres e estimados leitores a descobri-los. Darei só mais alguns tiritos, não como crítico literário, que não sou, mas como franco-atirador de serviço, entusiasmado com este Frank Colmi, desde que o meu amigo JMB me confiou a leitura da primeira versão, antes do habitual polimento final.

Este livro é escrito a meias entre o “eu” avisado do JMB e o Outro que se insinua na sua sombra. Referindo-se a Frank, a dado passo da narrativa o autor questiona-se: “Que quantidade da minha imaginação é constituída por ele?”. E sobre Colmi, o novo intruso que veio associar o seu nome ao de Frank, adensando a alteridade: “às vezes imita-me e eu suspeito que esse comportamento não resulta da manifestação de uma vontade explícita da minha parte para me transformar em objecto precioso ou no intérprete singular de um drama com contornos psiquiátricos. Fujo disso. Suponho que deverá ser uma aura ou talvez um fluido, a manifestação de uma fragilidade simultaneamente sedutora e comovente.” E, mais precisamente: “Trata-se de uma voz dentro de mim em que eu acredito e a que atribuo realidade através da minha consciência.” Ficamos descansados: JMB-autor está de bem com as suas próprias sombras e alteridades, por assim dizer, com a sua própria inquietação e melancolia, substituindo a hipótese do divã pela do devaneio libertador nesta feliz aventura literária. Pum! Pum! Terei acertado? É que, em se tratando de Frank Colmi, o alvo tanto está lá como “era uma vez”.

Divertido, louco e imaginativo é o jogo com as palavras. O que aqui se celebra é a palavra livre, encantatória – essa que Mallarmé inaugurou no século XIX – a palavra disposta a acolher diferentes significados ou até a fintá-los a todos em nome da sua materialidade visual, sonora ou musical, emprestando ao texto ritmo, melodia e encantamento. A palavra que brinca consigo mesma, como a ambiguidade Colmi/call me, como a personagem Soni Efiéme, como a bem nortenha troca dos “bês” pelos “vês” (Boa, Gente dando vez a Voa, Gente), como na divisão da peça de teatro em tartes, no lugar de partes, remetendo-nos para o primado da sensorialidade, da leitura gostosa; ou na fusão das personagens Brólica e Impélica, de que resulta Brélica, e por aí fora. Fique o leitor com o prazer da descoberta destas ambiguidades e trocadilhos, inteligentes e bem-humorados.

E o riso, essa “bomba espiritual”, essa irrisão que baralha o sentido das palavras excessivamente sujeitas à sobre-exposição mediática ou política. Neste caso, como se o autor quisesse relembrar o seu absoluto desalinhamento com a crescente funcionalização burocrática e tecnocrática da linguagem, incluindo aqui as excrescências politicamente correctas e todos os estúpidos revisionismos e higienismos vocabulares, que atentam contra a nossa liberdade e inteligência na escrita, na leitura e no exercício dialogal dentro do que resta do espaço público comunicacional.

Mas não rimos só. Somos levados numa viagem por cultas referências subtextuais a muita “boa gente”, dessa que voa nos céus literários referenciais de JMB. E andam por ali, nalgumas esquinas do texto – e cito rapidamente só quem me aflora num relâmpago de memória – nomes tão diversos e distantes entre si no tempo, como Conrad, Brecht, Calderón, Shakespeare, Pessoa, Melville, Bernardim Ribeiro ou Fernão Lopes. Num dos textos mais extraordinários do livro (“O Sonho de Frank”, que verdadeiramente é ou daria um capítulo) há um subcapítulo chamado “Breve Incursão em Azheta”, uma espécie de país-cidade narrado em modo de Italo Calvino. E por falar em cidades, Braga lateja ao longo deste livro numa infinidade de referências, onde não faltam à chamada os lugares de uma certa nostalgia, como os cafés Bristol e Dublin, o Ateneu ou o Hotel Hespanhol.

“E eu? Mas quem sou eu?” – existir apenas enquanto meia verdade

Terá JMB escrito este livro para arrumar de vez com o seu heterónimo Frank? De facto, num dos últimos textos (“Adeus Frank”) a volátil personagem despede-se assim: “Ao longo da minha vida, meu caro, posso jurar a pés juntos que ouvi muito peido e muito sino. Agora estou cansado. Vou finalmente viver para o campo e aproveitar para escrever um pouco. Não vou precisar de grande coisa. No sítio que escolhi ainda há água e bosques e terras de semeadura e um laguinho com repuxo, onde me posso sentar a ler Thoreau”. E mais adiante: “Frank saiu muito cedo. Ainda teve tempo de me dizer, meio em segredo, que ia preparar o regresso”. Fica aqui implícito que, tratando-se de Frank, todo o adeus pode ser um até já (“vou ali e já venho”) ou não fosse ele o tal Gato de Schrödinger.

E eis que logo a seguir, em “O Nascimento de Colmi”, aparece uma nova figura envolta em incertezas. Quem é Colmi? Talvez “uma experiência da minha aniquilação”, “um resto de Frank que decidiu ficar a viver em Braga”, talvez “uma criação do pensamento melancólico”. Ora, Frank, que já estava de saída, junta-se a Colmi fundando uma nova figura da alteridade do autor, Frank Colmi, que deixa tudo em aberto, pois como o próprio JMB admite, não ter a certeza que seja uma figura “em demanda de uma luz ou de uma obscuridade”, sendo que a obscuridade, também ela “tem as suas delícias e sabores e não pretendo usufruir desse prazer”.

O autor revela-se aqui um mestre na arte movimentar as peças, baralhando-nos como num mise-en-abîme. Mas se o ilusionista JMB brinca connosco, com as nossas percepções e entendimentos, também nos leva para uma clareira de maior compreensão acerca da equação eu-Frank-Colmi e da inquietação que isso lhe causa (ou nos causa a todos, pois qual de nós não se debate entre o Mesmo e os Outros dentro de si?). Num dado passo, confrontando-se ao espelho com as suas alteridades, faz a pergunta: “E eu? Mas quem sou eu?”. E a resposta vem-nos noutra passagem, como hipótese filosófica: “A impressão com que vivemos, de haver unidade e história, não corresponde exactamente à verdade. Neste momento não estou em condições de desenvolver em profundidade a minha tese, mas tenho a certeza de que nós só existimos como meia verdade”. O que não quer dizer – arrisco eu – que, no plano ontológico, existamos como uma meia-mentira, mas sim que há aí uma região de profundidades, uma sombra, uma obscuridade, uma interrogação permanente que nunca deixará de nos inquietar e, para nosso bem, desafiar.

E aqui chegado, dado o último disparo, mais não digo nem comento sobre esta obra que convém lerem desarmados, como havia dito, mas onde um olhar mais empático pode levar-nos à descoberta de intensidades telúricas e sismografias do “eu”.


Imagem: Edições Húmus / Amadeu Santos

Obs: texto original publicado como Prefácio do livro Frank Colmi, nas Edições Húmus, e datado ‘Braga, 7 de Junho de 2023’. O texto foi republicado na página de facebook de Amadeu Santos a 10 de Janeiro de 2024, com a introdução apresentada no início deste texto. Foram também realizadas muito ligeiras adequações editoriais na presente edição.


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