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O Rei vai nu: crónica de um regicídio anunciado

 

 

Há anos que não dava um chá de caridade. Baixou ligeiramente o som do gira- discos. Ópera. Sentiu uma doce alfinetada a dirigir-se, do tórax, em direcção ao púbis e levantou-se para o vazio. O cérebro recusou-se a elaborar a continuação da vida e estatelou-se, desajeitadamente no tapete persa. A emoção traíra-lhe as cruzes.

Quando, minutos mais tarde, reabriu os olhos, pareceu entender tudo o que entrevira antes. Mãos à obra.

Toda a tarde rabiscou cartões a anunciar uma festa para a semana seguinte. Não faltariam ministros, duques, deputados, chefes de, estrangeirados, primos do 7ºgrau, pintores, músicos e amigos chegados.

Durante a semana o reino andou em frenesim. Não se falava noutra coisa.

A misteriosa senhora contratou os melhores mordomos, coisa que sempre dispensou, para a ocasião solene. Segundo se dizia o mordomo é sempre o culpado, e assim, nada melhor para encobrir o imenso crime que se pressentia no ar.

Chegado o dia fatal a anfitriã deslocou-se ao cabeleireiro, que por sinal não estava convidado, para ajeitar as melenas.

Faça-me um penteado de peixe, pediu delicadamente.

Goraz ou redfish, perguntou sensibilizado com tamanha honra.

Nem uma coisa nem outra, preferiria antes carapau alimado.

Com certeza, referiu sem se mostrar magoado, vou-lhe fazer um penteado bem avinagrado.

Às seis da tarde o portão do sumptuoso palácio foi aberto de par em par, deixando entrar aos trambolhões os ilustres convidados que se amontoavam à entrada.

Estava ali reunida a nata do reino. Bebericando, petiscando e convivendo sem pressas, o chá foi decorrendo a contento de todos. Foi então que se anunciou o próprio rei:

Cá estou eu sempre alegre e fanfarrão que mesmo sem convite vos venho alegrar o serão! Cantarolou entrando ao ritmo de Strauss.

O rei vem nu! Gritou uma criança presente, enquanto era arrastada para as masmorras do palácio.

A multidão de convivas espumava de prazer enquanto a dona da casa recebia S A R, dando qualquer desculpa esfarrapada para o facto de não o ter convidado – como se tudo não tivesse sido premeditado…

O monarca compreendeu e juntou-se a um grupo de pederastas, que bebericando o chá morno, lhe apreciavam o minúsculo apêndice do baixo ventre.

Aproveitando o entretenimento geral, a velha senhora retirou-se um pouco e voltou com a maçã envenenada que tinha preparada para executar o projectado.

O rei, já ligeiramente embriagado, rodava de grupo em grupo animando a festa. Agora divertia, com o seu humor imanente, os amigos chegados. As nalgas reluziam-lhe à luz difusa do candelabro.

Meus senhores e minhas senhoras, interrompeu a velha com a maçã na cabeça ( velho costume do reino ), não queria deixar de aproveitar a presença de S A R sem lhe agradecer a honrosa presença nesta modesta casa. E por isso, nesta ocasião especial em que comemoramos; com este singelo chá de caridade; o nascimento do meu segundo dente do siso, gostaria de oferecer-lhe esta simbólica maçã, colhida na árvore da vida.

Romperam os aplausos na sala enquanto o rei recebia em suas mãos tão valioso presente.

Comovido, avançou para o meio do salão para soltar algumas palavras de agradecimento:

Como sabem, começou enquanto deixava escorrer algumas lágrimas pelos ombros abaixo, a maçã é o brasão da minha família desde tempos imemoráveis e esta está tão apetitosa que , com a vossa licença, não posso deixar de a comer já. O ruído da dentadura cariada do rei penetrando a carne viçosa do fruto da árvore da vida ecoou no salão fazendo vibrar os cristais. À segunda dentada o rei revirou os olhos e tombou no gasto tapete persa: estava consumado o regicídio.

A festa continuou até às tantas e ninguém acusou os mordomos do sucedido. Só alguns, por certo maldosamente, acusaram, sem convicção, o cabeleireiro despeitado.


Imagem: Bubok / Vítor Cardeira (ed VN)

Obs: publicação original no livro Transeuntes.


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