“E adiantando-se um pouco mais, caiu com a face por terra, orando e dizendo: «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. No entanto, não seja como Eu quero, mas como Tu queres» (…) Afastou-se pela segunda vez, e foi orar, dizendo: «Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que Eu o beba, faça-se a tua vontade».” (São Mateus, 26.39, 26.42)
Entrados que estamos, de acordo com o calendário cristão, no período da Quaresma, lembrei-me de uma das mais belas e dolorosas canções da MPB, “Cálice”, composta em 1973 por Gilberto Gil e Chico Buarque de Holanda e logo proibida pela ditadura militar. Acrescidas às prisões, torturas e exílios forçados dos opositores, entre os quais artistas, muitas foram as canções censuradas pelo regime, e recordo, por exemplo, “Apesar de você” (Chico Buarque), “É proibido proibir” (Caetano Veloso) ou “Para não dizer que não falei de flores” (Geraldo Vandré).
Voltando a “Cálice”, a canção ia ser apresentada em palco nesse ano de 1973 em São Paulo e Gilberto Gil e Chico Buarque bem o tentaram com um estratagema, mas desligaram-lhes os microfones. Só em 1978 é que a canção seria publicada em disco de Chico Buarque e com a participação da belíssima voz de Milton Nascimento. Ainda nesse ano, Bethânia também a incluiria no seu álbum “Alibi”, reforçando o seu acento dramático.
Procurando mais sobre “Cálice”, descobri no Youtube um depoimento preciosíssimo de Gilberto Gil sobre o processo de construção da canção, que aqui deixo juntamente com as versões acima referidas. É de se lhes tirar o chapéu, a Chico Buarque e a Gilberto Gil, pelos seus talentos musicais e poéticos, pela sua inteligência e coragem, enfim, pela sua genialidade.
E mesmo que toda a gente conheça bem “Cálice”, não resisto a lembrar a letra da canção que tem como refrão: “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”. Note-se a semelhança sonora cálice/cale-se e a referência explícita ao sangue das vítimas da ditadura.
E, então, o resto do poema: “Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor, engolir a labuta / Mesmo calada a boca, resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta / De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta / Tanta mentira, tanta força bruta. // Como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado / Esse silêncio todo me atordoa/ Atordoado eu permaneço atento/ Na arquibancada pra a qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa. // De muito gorda a porca já não anda / De muito usada a faca já não corta / Como é difícil, pai, abrir a porta / Essa palavra presa na garganta / Esse pileque homérico no mundo / De que adianta ter boa vontade / Mesmo calado o peito, resta a cuca / Dos bêbados do centro da cidade. // Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado / Quero inventar o meu próprio pecado / Quero morrer do meu próprio veneno / Quero perder de vez tua cabeça / Minha cabeça perder teu juízo / Quero cheirar fumaça de óleo diesel / Me embriagar até que alguém me esqueça.”
Escrita terna e afetiva de José Miguel Braga homenageia Maria Ondina Braga
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Obs: texto previamente publicado na página facebook de Amadeu Santos, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.