O que vale um reformado?

O que vale um reformado?

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Na lógica do poder, [um reformado não vale] nada. Mas não sempre. Quando o carrocel eleitoral gira, aí, o nosso reformado tornado eleitor passa a ser uma peça valiosa na mise-en-scène propagandística dos partidos do “arco governativo”. Mas mal o seu voto pingue na urna, ei-lo de regresso ao seu glorioso nada. É quase sempre fatídico (talvez sem “quase”).

Para a maquinaria do poder, e mais ainda sob este novo capitalismo neoliberal, o reformado não é um ser humano que conte, é mesmo aquele que está a mais, digamos antes, um mero número estatístico, uma despesa pública bem chata, uma avaria no sistema, um erro no balanço populacional.

Há reformados e reformados

De que vale martelar a cabeça dos governantes de que um reformado merece todo o respeito por, durante 45/50 anos, ter contribuído com os seus impostos para engordar os cofres do Estado, ter trabalhado para a riqueza do país e, na maior parte dos casos, para a de uma minoria que é bafejada com reformas de luxo (entre a qual muita malta da governação)? A entrada na reforma ou na aposentação, ao cabo de uma vida de trabalho muitas vezes desumano e mal pago, nunca é digna de uma homenagem ou compensação por parte da governança. Até se sobe mais um degrau no escalão do IRS. Bem, ele há reformados e reformados. Há os da carruagem vip (a minoria que vai continuar a viajar pelos cinco continentes, a frequentar restaurantes com estrelas Michelin…) e há os outros todos: os da carroça de segunda (onde me incluo, enquanto classe média baixa, historicamente destinada ao empobrecimento) e os do grande vagão da terceira classe (sobrevivendo heroicamente, migalha aqui, migalha ali).

Ser reformado e des-viver na Terceira Idade

Reformaste-te? Agora aguenta, que vais ter que des-viver, aprender a viver pior. Reformaste-te? Agora aguenta por estares a esmifrar o saco da Segurança Social e a fazer emagrecer as reformas do futuro destinadas aos teus filhos e netos. Reformaste-te? Vê lá se não duras muito tempo, que vais dar muita despesa ao SNS. “Lamentavelmente”, não te podemos compensar pela tua dedicação na vida activa, mas talvez Deus lá em cima acolha gloriosamente a tua alma, se apressares a última viagem, se não te demorares a tocar na tecla “Delete”.

A chegada à nobre e cada vez mais desconsiderada Terceira Idade é uma coroação de medalhas, a não ser que a graça divina te tenha bafejado com saúde de ferro. Mas sim, prepara o peito para as receber: ele é a artrite reumatoide, a artrose e as dores lombares; eles são as dificuldades respiratórias, a insuficiência cardíaca; e cuida-te da diabetes e do par Alzheimer/Parkinson, ou de outras maleitas contraídas na tua vida activa que agora se revelam ou agravam. Não tens como pagar a operação às cataratas, o aparelhinho para os ouvidos, o pacemaker, as sessões de fisioterapia ou o cocktail da medicação? Joga no Euromilhões, se te sobrarem uns euros. E ai de ti se não fosse o SNS, e mesmo assim te queixas da cirurgia adiada! Noites mal dormidas, dias de estuporada solidão? Enterra-te no sofá e liga a tv, come os programas da manhã e da tarde, vê o rol de desgraceiras da vida dos outros na CMtv e dá-te por feliz; diverte-te, olha a Cristina e o Goucha, fala com eles.

Reformar os aposentados, a Segurança Social ou a máquina do Estado?

As contas do país não estão “certas”? Corte-se nos aposentados. Para os de cima (banca, grandes companhias), é tudo palavra macia e luvinha branca. Superlucros? É melhor não incomodar, só se Bruxelas exigir. Para os de baixo, é a “cantiga do bandido”, a mãozinha de larápio. Foi assim com o implacável Passos, que cortou bem mais do que o FMI pedia, e assim é com o malabarista Costa, use ele a falaciosa retórica que quiser (só que o rei vai nu!). Mas isto nem sequer é uma questão de pessoas, de sentimentos e ideias pessoais. E, quer Passos quer Costa, podem até no seu íntimo ter consideração pela Terceira Idade. Certo que há governantes mais submissos ou mais desumanos do que outros (olhem aquele fdp que governa o Brasil). Mas… é o sistema, pá! Que, porém, os partidos do poder e a sua gente mais habilidosa servem e do qual, uns mais outros menos, se vão servindo sem complexos de se reclamarem socialistas, social-democratas ou democratas-cristãos. Oh, onde já vai o conteúdo destas etiquetas!

Mas é nisto que estamos: num dia, a Segurança Social tem os seus fundos bem sólidos, bem garantidos; noutro dia a sustentabilidade da dita está “em risco”, pode mesmo vir a falir. Mas ninguém se mexe a sério para a dita “Reforma” da Segurança Social. Ou para uma “Reforma” da máquina do Estado, que corte as tais “gorduras” que tanto falam mas não ousam emagrecer. A população envelhece? Mas como pode a maioria dos mais novos, tão precarizados, constituir família, fazer filhos, pagar rendas de luxo por casas vulgares? E quem incentiva ou não desincentiva esta entropia social? O Estado, claro, os partidos da governação.

Os governos não devem tomar decisões que rocem a crueldade

Entretanto, para os aposentados, fazem-se leis e desfazem-se, promete-se e falta-se à promessa, o branco e o preto alternando com a mesma facilidade. Não há demasiado tempo prometia-se um “aumento histórico” das pensões, agora é o que se adivinha e mesmo se vê. Ele há sempre discursos para umas coisas e para as outras e, de um dia para o outro, é só reencaixar as peças do puzzle retórico. E, no meio disto, temos demagogia, irresponsabilidade e mentira que sobre e só uns nicos de verdade.

Não, não vamos ficar melhores em 2024 e isto vai piorar a partir daí. Acontece, senhor primeiro-ministro e senhora ministra da Segurança Social, que os reformados ainda são gente, e não precisam menos de dinheiro do que antes. Também são cidadãos, têm vontade de viver, desejos e esperanças como qualquer outro ser humano. Vemos reformados de vários outros países viajarem bem muito mais do que os nossos. Temos mesmo que ficar colados nos bancos dos jardins, autocontemplando a nossa tristeza, à espera que o tempo passe? Acontece que muitos reformados (e conheço alguns), sustentam filhos desempregados e demasiado precarizados, pagam até os estudos e outras despesas dos seus netos. A quanto mais terão que renunciar? Dir-se-á: os governos não têm que ter coração, agem com racionalidade e pragmatismo. Mas escusam, e sobretudo não devem, tomar decisões que rocem a crueldade. Os aposentados vão ou não vão viver pior depois de 2024 e até ao fim das suas vidas? Tirando a peneira com que nos querem tapar o sol, vê-se claramente que sim. E é tão triste, tão revoltante.

(Escrevi isto logo depois de o governo ter anunciado as recentes medidas para fazer face à crise; escrito a jacto, demasiado a quente, hesitei em publicar; mas o coração também tem as suas razões. Siga!)

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Acerca do Autor

Amadeu Santos

Amadeu Santos nasceu em Guimarães, em 1953. Licenciou-se em Artes Plásticas/Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto. É professor aposentado do ensino secundário. Leccionou Cultura Contemporânea na Escola Superior Artística do Porto (extensão de Guimarães). Como artista, trabalhou para diferentes galerias e expôs individual e colectivamente no país e no estrangeiro. Fez diversas palestras e orientou diversos cursos livres nas áreas da cultura artística. Trabalhou em jornalismo em Lisboa. Foi director da revista Defacto.

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