Um gajo fechado em casa irrita-se mais, é capaz de ser isso. Certo é que dou por mim irritado com coisas que não se resolvem com irritação.
Irritado com noticiários televisivos que nunca acabam, que se prolongam sem nada dizerem, que repetem até à náusea as imagens do dia anterior, e que mesmo quando são outras são exatamente as mesmas: diretos de hospitais cheios, ambulâncias à porta, declarações de profissionais de saúde que garantem estar a lotação esgotada. São horas de um desfile de riscos, ameaças e medo às costas de uma informação que, enquanto informação, despida da dimensão circense, cabia em 10 minutos de noticiário.
Duplamente irritado com a sucessão de casos de abusos na vacinação. Irritado com quem abusa, mas irritado também com as televisões que, uma vez mais, exploram a situação até ao enjoo. O Governo devia ter dado um sinal mais firme logo no começo, é verdade. Por exemplo, no caso de pessoas nomeadas por si próprio, como sucede com quem dirige os centros da Segurança Social, onde ocorreu um dos primeiros casos, demitindo imediatamente o responsável pelo abuso, declarando perda de confiança política e explicando isso mesmo em alto e bom som. Talvez se tivessem evitado alguns casos. Outros não, porque muitos dos casos denunciados são a expressão acabada do país que somos, pelo menos uma parte do país: pequenas comunidades, onde todos se conhecem, onde a ninguém passa pela cabeça fazer uma desfeita ao padre, ao chefe da banda ou ao tesoureiro da Misericórdia.
A maior irritação, porém, nem sequer é com esses abusos de gente sonsa e pouco solidária. A maior irritação é com a falta de discussão sobre o que mais importa. Por exemplo, não estaria na altura de discutir seriamente o papel dos estados e da sua relação com os interesses privados? A Rússia e a China chegaram a uma vacina, que agora administram de acordo com o que entendem ser os interesses do Estado. Na Europa, pagámos (ou ajudamos, generosamente, a pagar) a investigação a privados, como é próprio da boa cartilha liberal. Estes, além de se entregarem agora à obtenção do máximo lucro, gerem a distribuição como lhes convém, pouco ligando aos protestos dos governos que ajudaram a pagar a conta. Para quem se cansa a falar de «preconceito ideológico», não será disso que aqui se trata? A resposta habitual, a de que os privados fazem melhor e mais barato, aplica-se também aqui? Não me parece…
Bem sei que é melhor deixar passar a tormenta para que se possam fazer contas com maior precisão. Ainda assim, feito o balanço possível nesta altura, parece evidente que os arautos do liberalismo deveriam justificar o luminoso caminho para onde nos empurraram – a teoria do Estado mínimo contém em si o princípio da redução da oferta pública, cujas consequências bem percebemos com o sumiço das camas hospitalares, por exemplo.
Já agora, uma irritação final: não seria já tempo de a Europa ter respostas coordenadas para situações de crise como esta? Tão preocupada anda sempre com o calibre da pera-rocha e com a rotundidade do tomate cherry que não consegue criar uma estrutura permanente de apoio a situações de catástrofe? Faz sentido andarmos a negociar ajudas país a país? Não, não faz. E o que não faz sentido tende a irritar-me por estes dias, mais do que é habitual. Só isso.
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