Criação Artística | Politicamente (in)correto?

 

 

 

Em primeiro lugar, quero agradecer o convite e a existência de uma plataforma de trabalho para o acesso à cultura. Agradeço também a aposta em debates como este em que tentarei sintetizar o meu pensamento através de questões simples e alargá-lo a todos os presentes para uma sessão o mais participativa possível.

O tema proposto tem a dificuldade de ser vasto e de não ter contornos ou um limite visível. É comum ouvir-se a expressão: eu sei que não é politicamente correto dizer isto, mas é o que eu penso. Deduzimos por esta frase que o “politicamente correto” se situa no domínio da Linguagem. Do que expressamos e do que escondemos. Mas então os contornos sobre o que se pode expressar, ou não, são estabelecidos por quem? Pelo senso comum? Pelo reconhecimento, inclusão e respeito dos direitos de algumas minorias? Ou será uma ditadura dessas minorias apenas respeitada por uma indiferente maioria? Mas onde e em que lugar? No Ocidente ou no Terceiro Mundo? Não será “Terceiro Mundo” já uma denominação politicamente incorreta?

Não sei.

Sei que me incomoda o politicamente correto na sua ação formal e como é utilizado e manipulado pelos meios de comunicação; e, como reflexo, invade todo o discurso político que é cada vez mais uniformizado, e, como tal, muito pobre, permitindo até que alguns radicais (também de esquerda, mas especialmente de direita) o utilizem para construir um pseudodiscurso de combate que os beneficia, tendo em conta a camada de verniz cinzento que o discurso político no poder (corretíssimo) adota para navegar sem ventos nem tempestades.

Deste sempre, e foi a Poesia que me o ensinou, que não tenho medo das palavras. No meu discurso (e todos temos um discurso pessoal, mesmo quando adotado do politicamente correto), a minha principal preocupação é a de encontrar as palavras adequadas que representem o meu pensamento, que deve transmitir o que sou, o que faço e o que desejo, sem qualquer artifício. E lá estamos de novo no território da Linguagem.

Sendo eu editora e uma leitora curiosa, devo dizer em público que o politicamente correto é uma barreira à criação literária, creio que a toda a arte em geral. Mas também um grande teste à liberdade do autor. O autor com código de conduta elaborado pela linguagem do politicamente correto corre sempre a favor do vento, pois o que pretende é ser popular e aplaudido. O autor que tem consciência do seu trabalho artístico não prescinde da liberdade e constrói ele próprio um território que será o da provocação e da afronta ao que lhe é permitido, alargando sempre o círculo do conhecimento, e que mais tarde, através da sua arte, devolve à comunidade. Autores domesticados ou politicamente corretos são, para mim, o mais triste espetáculo do mundo.

Pessoalmente, não respeito autores que pesam as palavras na balança com o único objetivo de disfrutarem de benesses oferecidas à arte domesticada, a única que o Poder aceita e premeia com alguma candura e indisfarçável satisfação. Podem vestir-se de artistas, representarem durante toda a sua vida os rituais reservados aos verdadeiros autores, mas são, serão sempre, serviçais de substituição, usurpando o lugar dos que, pelo seu trabalho real, concreto, e com total liberdade, fixam o mundo, a vida e o tempo secular que lhes coube ao nascer. Dar testemunho do nosso tempo, com a curiosidade e reflexão sobre o mundo que herdámos é a função primordial de qualquer autor.

Abordando o nosso tema, escolho um autor para sustentar o que digo. Philip Roth dificilmente, mesmo vivendo mais 10 anos, poderia aceder às benesses do Poder da Academia Sueca, pois nada do que escreveu se enquadra dentro do politicamente correto, valor essencial exigido pela referida Academia, que, como recentemente assistimos: exige mas não pratica.

Admiro em Philip Roth a coragem de não ceder ao politicamente correto, para ser reconhecido por Academias ou outro tipo de poder. E só por força do seu trabalho e talento tenha sido premiado, quase sempre pelos seus pares. Quando Philip Roth escreve e publica A Mancha Humana, em 2010, já escreve uma tese do que agora discutimos neste Museu Francisco Tavares de Proença Júnior, em Castelo Branco.

Há sempre um preço a pagar quando se é autor da sua própria linguagem, sem cedências, não só por provocação ou questionamento, mas por exercício da liberdade que todos devíamos praticar, com ou sem obras de arte como testamento.

Acredito, há quarenta anos que acredito, que a verdadeira dimensão do que somos é aquilo que fazemos, muito mais do que aquilo que dizemos ou por convenção comunitária somos obrigados a dizer. Mas a dignidade, a par dessa força que nasce ao perceber que a vida em comunidade é um bem extraordinário, devia-nos obrigar à honestidade intelectual, e devia, sobretudo, respeitar e em caso algum invadir o território da criação artística, seja na literatura, no teatro, no cinema, nas artes plásticas.

Em circunstância alguma a criação artística deve ser refém do politicamente correto, nem através da ameaça de exclusão ou de condicionalismo económico ser obrigada a colaborar com forças de bloqueio que impedem os espíritos livres e criativos de se manifestarem artisticamente, em pequenas ou grande comunidades. Em bairros ou guetos. Em concelhos ou comunidades alargadas. Em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo.

(Texto lido por Elsa Ligeiro no debate “O Politicamente Correto: uma forma de incluir ou uma nova barreira?”, ocorrido no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco, no dia 19 de fevereiro, numa parceria entre a Associação Terceira Pessoa e a Acesso Cultura. Elsa Ligeiro (n. 1962), natural de Alcains, concelho de Castelo Branco, é responsável pela editora Alma Azul, fundada em 1999. A convite de Diogo Martins, que também participou no referido debate, a autora permitiu que o seu texto fosse publicado na revista Vila Nova.)

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Sobre Elsa Ligeiro e a editora Alma Azul:

Alma Azul, Uma vida dedicada à Poesia, em Segredo dos Livros

Imagens: criações da artista Helena Almeida

Fotografias: Terceira Pessoa

 

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