Há uns anos, na UNIVERSIDADE de SÃO PAULO (U.S.P.), inesperadamente perguntaram-me sobre uma determinada forma de escrita: “O que é a poesia?”
Fiquei completamente em silêncio, olhando como um eterno aprendiz para o rosto de quem fez a pergunta, e lá tentei conversar com ela. E disse-lhe contaminado com “ensaiar o dizer” de Beckett: um dizer dentro do fracasso: a POESIA hoje, aqui-agora, é uma força-constelação a atravessar a vida que está a perder o sentido, está a desmanchar-se… E simultaneamente faz-nos acreditar na desmesura da existência mesmo perante o horror e a ruína: a poesia envolve as dores do ÚTERO de uma MÃE que embrulhou o seu filho morto no avental rasgado nos campos de guerra: uma dor ventral, uma dor que fissura o que nos aprisiona: a POESIA é o instante-pleno de Diderot, é uma sonoridade biliar, é uma duração que extrai o insensível do sensível, é um chamamento da cegueira para vermos, é extrair o estômago de Fausto, é um dicionário insano a prolongar a nossa mão, é o amarelo problemático de Van Gogh, o grito insonoro do Camelô, poderá acontecer no silêncio de Craig e de Artaud, na fuga da criança pela favela, e no lugar de Ré-existência de Primo Levi, como também está no assombro do ínfimo, no abismo branco de Malevich, nos limiares vesânicos, na cabeça zurzida de Bacon, no estilete do anatomista, na dança acósmica de Pollock, na Biologia de Maturana, nas mãos do vindimador a transbordarem de mosto, na boca esfomeada, no braço amputado de um pugilista, no exílio, na inocência, no impensável, no imperceptível, no anómalo, na loucura, no MARACATU, no animal, no vegetal, nos cânticos de Cartola e de Noel Rosa…, e e e uma coisa também poderei dizer: a poesia jamais estará na vida besta social das premiações e das consagrações e das ditas homenagens assassinas dos poetas ao serviço dos açougues vampiristas…
Outra coisa que poderei dizer … Uma das forças éticas da POESIA é evitar que o corpo do poeta morto não seja cadaverizado pelas negociatas das bajulações capitalísticas além de nos avisar que os fascismos de ontem retornam com capas moralistas, às vezes evidentes, e outras vezes encobertos por rostos de senhores e senhoras que se dizem de respeito.
Escrever: fazer do RITMO, do vazio e do silêncio uma dança no caos onde vivemos
Se desejas fazer da ARTE ou da LITERATURA uma resistência: ELAS não podem saber. O escritor cria lugares nos intervalos do tempo. A ESCRITA é uma CRUELDADE do corpo contra o poder que se encontra na “rostificação”, na página em branco, nos elogios, nas semióticas da significação, no sucesso, no escritor enquanto se diz escritor: as palavras exigem a desaparição para elaborarem o esquecimento e ressurgirem animalmente. ESCREVER é uma tentativa de libertar a vida “daquilo que a aprisiona”, é procurar uma saída respiratória, encontrar novas possibilidades delirantes, novas potências EXISTENCIAIS. A ESCRITA é um opérculo que religa disruptivamente as sinapses cerebrais e as paredes vibráteis dos órgãos indeterminados aos personagens rítmicos onde o PENSAMENTO se fortalece por meio do indefinido. A ESCRITA envolve a obscuridade no real que a vai tornar estranha, quase-imperceptível, impulsionando a correnteza de novas sensações, de novas semióticas, de novos relâmpagos-sígnicos: há uma dança cruelmente sensível entre o imprevisível e a renascença do pensamento que fez um pacto com o acto de escrever e com a vida construída por meio do caos… Sim, escrever é fazer do RITMO, do vazio e do silêncio uma dança no caos onde vivemos permanentemente…
Admirar o futuro em cada gesto e a coragem do inédito na POESIA e na ESCRITA
Admiro pessoas que não dizem EU, mas o duplo real que as atravessa e as modifica criativamente! Admiro pessoas que me trazem o futuro em cada gesto, em cada acontecimento, pessoas libertadas do passado-ressentido e plenas de experimentações de signos artísticos e de vida vitalista dentro do presente que afirma as diferenças por meio de um real que supera limites, sim, pessoas que criam em nós forças para nos conectarmos à alegria dos acasos, sem cobranças, sem ideais, sem intencionalidades; pessoas que sentem que a vida só acontece através dos encontros que activam liberdades e forças espirituais onde a singularização e a inocência envolvem o tempo puro completamente fora das “toupeiras disciplinares”, da máquina oficial-social e dos controles panópticos, axiomatizados, parasitários, sim, admiro pessoas que instauram a existência na coragem do inédito, do inesperado, gerando transmutações dadivosas, aqui: apenas os fortes assimilam a imanência de novos modos de vida, sim, dar-se, entregar-se sem julgar, ou classificar, é entranhar-se no excesso criativo do mundo, na energia de uma ética que RÉ.existe, CATALISA o múltiplo variável, a marchetaria de uma terra intensificadora de um comum que se difere com singulares velocidades afectivas, com almas nómadas regerminativas…,… ADMIRO intensivamente quem NÃO produz a miséria e tristeza de julgar a existência dos outros!
Obs: texto resulta da colagem de 2 textos previamente publicados na página facebook de Luís Serguilha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
A obra vulcânica de Luís Serguilha: plantar rosas na barbárie