Madame Christine Lagarde veio a Sintra explicar aos políticos e ensinar ao povo como é que as coisas devem ser feitas. As coisas económicas, entenda-se. Falou com a autoridade que lhe confere a «ciência económica», quer dizer, um saber que adquiriu um estatuto absolutamente singular no campo das ciências que estudam a vida dos humanos em sociedade. «A Economia é uma ciência de rigor, que se serve de instrumentos estatísticos e complexas fórmulas matemáticas para definir verdades que não admitem contestação». É mais ou menos isto que nos dizem e em que devemos acreditar. Esta verdade ocupa todo o espaço em que assenta a governação, sem deixar margem a discussão: os governantes devem obedecer às regras que os economistas descobriram e nos transmitem como verdade revelada. É este o (ir)racional que leva à exclusão do «saber económico» de qualquer escrutínio democrático e também de qualquer responsabilização quando as coisas correm mal.
A economia neoliberal vive de epifanias, verdades que desceram sobre os seus mentores e arquitetos e se tornaram irrefutáveis. Uma delas diz respeito à autonomia dos bancos centrais relativamente aos poderes públicos democraticamente eleitos. Ao invés de serem um instrumento dos estados na persecução das políticas públicas propostas nos programas eleitorais e aprovadas pelos eleitores, os bancos centrais seguem uma orientação própria, supostamente determinada por um entendimento objetivo, entenda-se não ideológico, das regras económicas. Só que não. Não mesmo! Não apenas porque as decisões dos bancos centrais são sempre ideológicas, mas também porque a exclusão dessas decisões do juízo democrático não garante eficácia, bem pelo contrário. Na verdade, o sucesso dos decisores económicos não se mede na eficácia, mas no grau de desresponsabilização que asseguram quando as coisas correm mal. Basta ver como os erros não diminuem a arrogância dos decisores económicos, estejam eles vinculados ao setor público ou privado. É hoje bastante consensual que as instituições económicas centrais, como o BCE ou o FMI, agiram erradamente quando aplicaram com extremo rigor medidas de elevada austeridade aos países do sul da Europa, como Portugal ou a Grécia. Consequência desse erro para quem errou? Nenhuma consequência. As empresas de rating, também elas orgulhosamente independentes do poder político dos estados, andaram enganadas e a enganar-nos durante décadas acerca da solidez do sistema financeiro, e os seus responsáveis sofreram o quê com esse trágico erro? Nada, pois claro.
Neste cenário, os políticos, as políticas e a democracia tornam-se cada vez menos relevantes. Cabe-lhes ocupar o palco com o drama e a comédia que alimentam os comentadores encartados. É a política dos casos e casinhos, dos ministros que ora mergulham no disparate, ora vivem breves momentos de glória, sem que nem uma nem outra coisa contem para o que quer que seja de relevante. A democracia reduz-se ao ato ritual do voto, que serve, basicamente, para escolher os comediantes que se seguem no hemiciclo e no conselho de ministros. No que conta, no que de verdade determina o sentido das políticas, a democracia entra cada vez menos. Habituados já estamos, habituemo-nos ainda mais.
Madame Lagarde é o exemplo acabado deste modelo de organização do poder – agora diz-se «governança», como se o estado fosse assim a modos que uma empresa que vende amendoins ou tremoços. A senhora serve-se de uma autoridade que não conquistou para pôr ordem no mundo! O poder que tem caiu-lhe no colo por delegação dos campeões da finança que, na sombra, mandam «nisto tudo», e por força da desistência de quem elegemos para nos representar. Dona de autoridade que não admite contestação, sublinha ou apaga dados e circunstâncias em razão de uma agenda ideológica que jura não ter alternativa. Por exemplo, partindo de um relatório que assegura terem sido os lucros excessivos das empresas os grandes responsáveis pela inflação, chega à conclusão (lógica, está bem de ver) que o perigo maior vem do crescimento dos salários que não aconteceu. Assim ensina e orienta quem governa, assegurando que na avaliação que faz não entra pinga de ideologia! O que diz e ensina nada mais é que a expressão das coisas tal-qual as coisas são. As decisões que toma e as receitas que impõe podem correr mal, sabe disso, mas pouco lhe importa. Se à custa das suas políticas mais uns largos milhares de cidadão perderem a casa em que vivem, como aconteceu com a aplicação de soluções igualmente neoliberais em 2008 e 2011, esse não será mais que um dano colateral. Pobres cidadãos, vítimas de fogo amigo e a quem deveremos solidariedade. E chega. Afinal, a teoria está certa, a culpa só pode ser do povo, que não se ajusta ao que a madame aprendeu e com afinco nos explica. Siga, pois, para bingo, que a democracia bem pode esperar.
Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Cunha.