Uma vez ligaram-me com uma estranha proposta, para mim certamente porque não conhecia esta sociabilidade. Almoçar, com uma família – um magnata, esposa e filhos – que queriam conhecer Portugal, a sua história, sociologia e política. Além do almoço num dos mais caros restaurantes de Lisboa, ofereciam um cachêt robusto por duas horas de conversa comigo. Agradeci e expliquei que fazia palestras, conferências, em muitos lugares distintos, sobre esses temas, mas almoçar já implicava um grau de intimidade que não me interessava. Recusei o convite, agradecida e, confesso, surpreendida. Não deixei de saciar a minha curiosidade e perguntei se era padrão, que sim, havia esse tipo de serviço, homens e mulheres de negócios pagarem para almoçar com intelectuais, políticos e jornalistas (falou-me de quem tinha aceite, o que naturalmente não escreverei). Confesso que adoro um almoço charmoso, e faço com gosto palestras em tantos lugares, pagarem-me para me ouvir ao almoço, como se pudessem comprar umas aulas em ilusão de proximidade afectiva, é algo que acho bizarro. Por isso recusei.
Mas depois pensei que, além de uma questão de princípio, o que me fez claro recusar, também foi a certeza de um almoço surpreendentemente aborrecido, a comida perderia o aroma e do vinho nem o toque imaginário de framboesa ficaria. Não há nada mais chato do que conversar com um homem de negócios, yuppie, expats, um “nómada digital” – o dinheiro não tem pátria e isso molda as pessoas, ficam sem cheiro, alma e interesse. Cheiro, alma e interesse nenhum dinheiro pode comprar.
Vivi na Holanda, na Alemanha, com muitos expats, porque eu era uma expat – sobrevivi em parte a isso porque criei laços reais com colegas, várias aluno/as foram na altura comigo fazer estágios, e porque a minha dedicação internacionalista que me levou perto de pessoas com quem partilho uma ideia de mundo. Uma rede que me faz sentir em casa em muitos lugares do mundo. Mesmo assim, eu era uma expat, desenraizada. Agora encontro, por vezes em Lisboa, inundada de estrangeiros sem alma, outros expats. Os temas de conversa são insuportáveis: as casas, os bairros, as mercearias, os restaurantes, os clichês ad nauseum sobre os portugueses, chegam a Lisboa maravilhados com banalidades da nossa vida, que repetem com entusiasmo. E surpresa: as sardinhas, o bacalhau, o fado, a senhora da esquina que lhes disse olá simpática (os expats não sabem o que é uma vizinha dizer-nos olá com simpatia). Não se aguenta. Entre idas ao pilates, restaurantes e cinemas com expats na Holanda e na Alemanha tive a minha dose disto.
As minhas amizades aqui (algumas com estrangeiros que de Portugal fizeram casa a sério) são outra coisa, são íntimas – conversamos da vida, de vidas intensas, contraditórias, com história, ao conversar descobrimos-nos na nossa humanidade cheia de complexidades, falhanços e desejos, alegrias sinceras, tristezas confessadas. Lembrei-me dos “povos sem história”, quando penso nos expats. Na verdade esta malta que gira em torno do mundo, com dinheiro, longe da família, sem amizades sólidas, sem esfera pública colectiva, à procura de um lugar que o dinheiro não pode comprar, de um sorriso num almoço que não pode ser comprado, são desenraizados, são povos sem história, sem aroma, sem cheiro, como o dinheiro. Nós, os que vivemos em Portugal, de diversas nacionalidades e origens, que aqui criámos raizes, somos um bibelô com que os expats procuram decorar casas caras, e vazias.
A venda de casas a investidores e nómadas digitais não só retira a quem vive só o direito elementar a ter uma casa ( e isso é socialmente obsceno), retira-nos os amigos, a família, empurrados para a imigração ou para a extrema periferia, isolados numa aldeia e nós isolados deles. Dá-nos em troca investidores, yuppies, nómadas e expats, uma colecção de gente sem vida.
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Obs: artigo com publicação original no blogue Raquel Varela | Historiadora, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.