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Disjunções

 

 

Se há uma palavra que hoje devia ser ensinada aos nossos meninos, na academia e também noutros graus de ensino, é a palavra disjunção. Nenhuma é mais útil que essa para percebermos a situação insustentável para onde a economia e a política atuais nos estão a conduzir. Talvez seja necessária uma precisão: não se trata tanto de aprender o significado da palavra, da sua etimologia ou do parentesco com outras palavras; trata-se de perceber os artifícios que políticos e economistas usam para esconder ou disfarçar as disjunções que caracterizam o presente.

A economia nacional e a vida real das pessoas

Ainda que por razões diferentes, o político com ambições e o economista mainstream convergem no esforço de esconder, disfarçar ou, na pior das hipóteses, diminuir a relevância de disjunções que conhecem bem por dever de ofício. Às vezes descuidam-se, e nessas ocasiões o estrago é inevitável. Exemplo de descuido estrondoso e ruidoso foi-nos oferecido pelo atual líder do PSD, putativo candidato a primeiro-ministro. Em 2014 Luís Montenegro saiu em defesa das medidas políticas do Governo Passos Coelho, e não encontrou melhor forma de o fazer do que afirmar que “a vida das pessoas não está melhor, mas a do país está muito melhor”. Líder parlamentar do PSD, Montenegro não era propriamente um anónimo, menos ainda uma eminência parda (quando muito parva, qualidade que não perdeu), mas na ocasião distraiu-se e pôs à vista de todos uma das disjunções que convém esconder, neste caso a disjunção entre a economia nacional e a vida real das pessoas comuns. Para políticos e economistas o que importa é o comportamento da economia, aquilo a que chamam «quadro macroeconómico», ou seja, os indicadores que permitem comparações e também, muito mais importante, aquilo que lhes permite reivindicar sucesso, seja nas políticas, seja nas projeções e análises macroeconómicas. A vida do cidadão comum, como Montenegro evidenciou sem querer, subordina-se aos indicadores macroeconómicos, e fora disso é apenas um detalhe que facilmente se consegue invisibilizar através do uso conveniente dos instrumentos estatísticos.

A notícia sobre a riqueza de Portugal e da Roménia

Uma notícia recebida por estes dias ajuda-nos a perceber como este género de disjunção é escondida e substituída por uma leitura moral e corretiva, usada como arma pelos «fortes». A notícia é que Portugal vai ser ultrapassado pela Roménia, novidade transmitida, repetida e comentada, gerando espanto, indignação e vergonha. Então os romenos, que há bem pouco víamos mendigando nas nossas praças e nos semáforos iam ultrapassar-nos?! Há na notícia e no modo como foi comentada um subtexto: devemos deixar-nos de fantasias, trabalhar mais e aceitar menos. Não é necessária grande atenção, porém, para percebermos a disjunção escondida com o rabo de fora, uma vez mais a diferença entre a riqueza nacional e a vida das pessoas. Ultrapasse-nos ou não, o salário mínimo na Roménia é hoje de 515 euros e a esperança média de vida é de cerca de 70 anos, ambos os indicadores bastante abaixo dos de Portugal, além de ser um país desigual, como revela o índice de Gini. Vamos, portanto, ser ultrapassados por um país que tem salários mais baixos, onde há maior desigualdade e onde se vive menos tempo. Sugiro que se envie para lá o Montenegro para explicar aos romenos que muito embora estejam na merda o país está fantástico.

A produção de riqueza e a sua distribuição

Consideremos uma expressão mais difusa da manipulação das disjunções por parte de quem nisso tem interesse. Algo que todos ouvimos milhentas vezes, tantas que incorporámos a mensagem acriticamente. Quando se refere a necessidade de aumentar os rendimentos do trabalho é quase fatal ouvirmos, por parte dos políticos no poder e também dos economistas e comentadores encartados, que sim senhor, que seria bem justo, mas que isso apenas se consegue aumentando a riqueza do país. O argumento é sensato, pois claro: não se pode dar o que não se tem, e quanto a isso não há contestação possível. O problema está na falsificação do corolário desta afirmação. Eis o corolário: se quem trabalha se esforçar por criar mais riqueza esta riqueza vais distribuir-se pelo tecido social. Eis a falsificação: a história recente mostra-nos que não é assim, que a um crescimento da riqueza nacional não corresponde uma distribuição equilibrada dessa riqueza. Isto é verdade para Portugal, mas é verdade, sobretudo, quando olhamos a economia global. Os gráficos (retirados de Trabalho de James Suzman, que se serviu de dados oficiais) mostram a evolução do PIB nos EUA (1980-2015) e do rendimento dos agregados familiares americanos (1950 e 2015). O único crescimento que acompanha o crescimento da riqueza nacional é o dos rendimentos mais elevados, concretamente a minúscula faixa de 1% dos rendimentos. O rendimento médio revela uma evidente tendência de estabilização e o 90% do total dos rendimentos teve mesmo um decréscimo.

Resistir às evidências por quanto tempo mais?

Se virmos bem, uma boa parte do trabalho dos economistas, sobretudo os de convicções neoliberais, e dos políticos que chegam à governação, consiste em gerir o que se mostra e o que se esconde. Servem-se de frases e ideias simples, do género «Primeiro é preciso criar riqueza para depois se distribuir», ou «Andámos a viver acima das nossas possibilidades», para através delas esconderem aquilo a que aqui chamei disjunções. Há, de facto, uma enorme e crescente disjunção entre a riqueza que todos nós construímos e a forma como ela se distribui, tal como existe uma enorme disjunção entre os indicadores macroeconómicos e a vida das pessoas, ou ainda entre as proclamações de preocupação ambiental e as políticas reais que não abdicam de crescimento efetivo. Quer-me parecer que a tela que nos colocam à frente e onde projetam retóricas e promessas não vai resistir muito mais às evidências que por detrás dela se escondem.

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