1. A efeméride
A guerra institui uma espécie de regime noturno perpétuo. Tudo é luto e perda, como se todas as ameaças, as reais e as imaginadas, confluíssem naquilo a que se chama «cenário de guerra», toldando o mundo com as suas sombras. Cumpriram-se cem dias noturnos de uma guerra que parece ter cada vez menos saída, encapsulando a Ucrânia numa noite infinita e cada vez mais escura. Na mesma altura em que em Inglaterra se comemora outra efeméride com júbilo, a viragem dos cem dias de guerra na Ucrânia obriga-nos a pensar a escala do tempo, mas também, e sobretudo, a forma como consentimos ser governados. De um lado uma rainha com um longíssimo reinado, sem outro poder que o da palavra. De uma palavra, no entanto, que não pode deixar de ser ouvida, configurando, por isso mesmo, um poder fático, que por ser apenas o poder de influenciar gera, se for bem exercido, uma estranha mas útil figura política: a expressão mínima de um máximo consenso. Do outro lado, com início há pouco mais de três meses, temos uma jovem guerra, filha de uma nostalgia imperial de matriz czarista, essa cicatriz tão viva que nem décadas de «socialismo real» conseguiram apagar. Expressão do velho liberalismo, a monarquia constitucional britânica é ridícula na permanente encenação de uma suposta exceção que a legitima, mas é democracia na sua submissão à vontade geral. Iliberal, a Rússia de Putin é expressão de um poder sem freio, alimentado por uma vontade iluminada e que não admite contestação. Estamos, portanto, entre uma efeméride feita de acenos reais a milhões de basbaques e uma efeméride trágica, feita de morte e de destruição. Assim vai o mundo, e nós com ele.
2. Os olhos são nossos, o que eles veem nem por isso
Cem dias são um marco, um número redondo, um motivo de destaque noticioso. Começam a ser muitos dias, demasiados para o apetite pela novidade que fomos ensinados a sentir. Ante a perspetiva de o conflito na Ucrânia se prolongar no tempo e sem se encontrar nada de novo para dizer, em breve o espaço mediático – esse não-lugar que define o sentido do mundo em que nos cabe viver – decretará ter chegado um tempo de trégua mediática no conflito. Não que o conflito acabe ou as mortes deixem de ocorrer. Elas deixam, isso sim, de contar, o que, vendo bem, é bastante eficaz: deixando de contar e de ser contadas, no duplo sentido do termo, elas deixam de existir para nós, que não somos senão espetadores da guerra – compassivos, indignados, indiferentes ou solidários, depende do feitio de cada um mas também do modo como a guerra nos é contada. Extraordinário poder, o do sistema mediático! «Ninguém morre no Iémen há muito tempo, ninguém morrerá na Ucrânia em breve, nenhum palestiniano será morto em Israel, nada disso sucederá se não nos for conveniente», diz essa abstração a que aqui chamo sistema mediático. Nada disso sucede, não por essas mortes não serem reais mas por não caberem na narrativa que mais vende no momento. Deter o poder de decidir o que se destaca e o que se silencia é também parte desta guerra. Poder contar a guerra a quem não a vive sempre foi importante. Hoje é tão decisivo como o disparo dos obuses ou o avanço dos tanques. Olhamos a guerra à segura distância em que nos encontramos e confiamos no que nos é mostrado. Embarcamos na crença infantil de que as televisões funcionam como um telescópio que amplia as imagens da guerra. Não é assim. Na verdade, o que temos diante de nós quando vemos os noticiários é uma enorme tela onde se projetam versões da guerra. Essa é a única «verdade» a que os nossos olhos têm direito.
3. O papel da história
As guerras, desconfio que todas elas, transportam consigo um longo e denso lastro histórico. Vendo bem, precisam de história para existir, no sentido em que são sempre a continuação de guerras anteriores, servindo cada nova guerra para reparar antigas humilhações ou para recolocar na ordem o que acontecimentos passados terão deixado fora de sítio. A ligação histórica entre vários conflitos é inegável – por exemplo, sem se considerar a I guerra mundial dificilmente se percebe a II – mas quase sempre esse exercício de encadear acontecimentos tem tanto de verdadeiro quanto de inútil. Podemos até argumentar que todas as guerras são uma só, que todas elas se enlaçam numa infinita cadeia de eventos, uns reais outros ficcionados, que todas as guerras são decorrência da seminal desavença entre Caim e Abel. E depois? De que nos serve essa delirante ou erudita convocatória do passado para resolver um conflito que mata e destrói no presente?A história, que é fundamental para qualquer entendimento do mundo, só atrapalha num conflito como o da Ucrânia. É uma camada mais, densa e esmagadora, que apenas serve para desculpabilizar indecências ou acusar presentes e ausentes, mortos que não se podem defender e vivos que não têm direito de defesa. Dizem-nos que a guerra não começou há três meses mas sim em 2014, com a ocupação da Crimeia. A causa da guerra deve então, asseguram, ser encontrada lá atrás, na criminosa ocupação da Crimeia (para uns) ou na subsequente perseguição aos russófilos do Donbas (para outros). Pela minha parte acho que bem podemos procura-la mais atrás, desde logo no desmantelamento da URSS, ou mais atrás ainda, na guerra civil que deu lugar a uma efémera Ucrânia e, logo depois, à reunificação de um império que falhara sob o governo dos czares e que voltaria a falhar sob bandeira soviética. Todas estas linhas do tempo são verdadeiras e outras ainda podiam ser traçadas. E depois? De que nos adianta essas verdades para a tragédia presente? Creio que de bem pouco. De nada servem para os milhares de pessoas que morrem ou para os milhões que fogem e veem as suas vidas destruídas em nome de uma reparação da história ou de um acerto de fronteiras. Esta guerra começou com a invasão de um país soberano por um império expansionista, e esta verdade não é subsidiária de nenhuma outra. No que vem de trás, desde Caim e Abel até ao final da guerra fria, encontramos apenas argumentos desencontrados, válidos, certamente, mas inúteis para a paz.
4. Direito de saque
Bem próprio das guerras, antigas e presentes, é o direito de saque, ou seja, a prerrogativa que o vencedor tem sobre o vencido e se traduz em várias modalidades de apropriação. Durante o conflito é comum o roubo de bens, sejam estes pertença de particulares ou institucionais, como os que se guardam num museu, mas são igualmente comuns outras formas de violência que remetem ainda para o direito de saque, como as violações. No final da guerra o direito de pilhar e violar transforma-se nominalmente noutra coisa, mas o efeito não é assim tão diferente: o derrotado cede ao vencedor valores, bens ou território, seja a título compensatório seja em forma de reconhecimento de uma superioridade militar que se traduz, também, no direito de escrever a história por parte do vencedor. Este direito a escrever a história não é coisa pouca, ao contrário do que possa parecer, já que uma vitória militar nunca será uma vitória plena se não lhe estiver associado este direito à última palavra, aquela que «explica» a guerra: legitimando as motivações; escolhendo uns atos de crueldade em detrimento de outros; transfigurando violência brutal em heroicidade. Este poder simbólico sobre o direito de definir o sentido da guerra está habitualmente associado à vitória militar, mas nem sempre sucede assim. No caso desta guerra, parece difícil que a uma vitória militar russa corresponda este direito, o que torna qualquer solução militar bastante problemática: o direito à palavra final por parte do vencedor é também o direito à palavra que põe fim à guerra e isso só sucede de houver uma legitimação suficientemente consensualizada.Em sentido inverso, há direitos simbólicos à palavra legítima e até a modalidades de saque que não decorrem de uma efetiva vitória militar. A chamada guerra fria acabou sem o disparo de um único tiro (muitos foram disparados, bem sei, mas sempre em palcos secundários e por interpostas vontades), mas as «democracias liberais», com os EUA à cabeça saíram vencedores, com direito à palavra e ao saque. A hegemonização do modelo democrático liberal, doravante moldado por um afunilamento para o âmbito estritamente económico da liberdade do sujeito, foi uma dessas conquistas de vencedor. O direito à palavra final num conflito é também uma notória expressão de otimismo: «Ganhámos, a razão está connosco, a história deu-nos razão!» Esse otimismo foi visto por alguns como o fim da história, e por quase todos como a sinalização do rumo que o mundo inteiro iria seguir: a democracia, esta forma de democracia, era tudo quanto o mundo e os seus povos necessitavam e desejavam. Tenho para mim que esta espécie de otimismo ontológico ajuda a explicar o fracasso das «primaveras árabes» mas também o descuido nas modalidades de expansão militar e económica do chamado «Ocidente». Sem que nada desculpe a agressão russa, esse otimismo dos vencedores é também uma das faces desta guerra.
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Obs: texto original publicado originalmente sob a forma de 4 capítulos na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido adequação editorial na presente edição.
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