Os partidos à esquerda do PS saíram destas eleições arrasados. Ainda que tenha contribuído para o desastre, o voto útil não foi o único culpado, até porque essa lógica não afetou o Livre, única força à esquerda que subiu a sua votação. No colapso da CDU e do BE combinaram-se diferentes fatores: penalização pelo chumbo do Orçamento; voto no PS devido ao temor de que Rio pudesse assumir a governação; um certo desgaste no discurso e nas lideranças. Estes fatores pesaram de forma desigual nos dois partidos. No caso da CDU estes fatores somaram-se a uma dinâmica de perda lenta que se vem notando há já muito tempo, no caso do BE terão pesado mais os muitos vasos comunicantes que tem com o PS , numa interação que faz associar o sucesso de um partido ao insucesso do outro.
Em Portugal o «bolo eleitoral» é composto por quatro fatias relativamente consolidadas. As duas grandes fatias, que pertencem a PS e PSD, têm uma notável estabilidade, resistindo à erosão que afetou outros partidos historicamente de poder em vários lugares da Europa. Há três variáveis que determinam quem se sai melhor em cada ato eleitoral. A primeira variável tem a ver com a cobertura do bolo, uma camada relativamente fina, meia dúzia de pontos percentuais, que escorre para um ou outro partido de acordo com a conjuntura política. A segunda variável tem a ver com uma parte do bolo que é invisível mas bem real: os abstencionistas, ou seja, eleitores que só se mobilizam perante propostas que os entusiasmam ou assustam, mas que podem ser determinantes em qualquer eleição, como terá sucedido na de domingo passado. A terceira variável é aquela que mais interessa para o que quero dizer. Tem a ver com a capacidade de PS e PSD fazerem crescer a sua fatia de bolo respetivamente à esquerda ou à direita do seu eleitorado fixo, «roubando» parte de pelo menos uma das outras duas fatias eleitorais. Um destas fatias, a que fica à direita do PSD, era habitualmente abocanhada pelo CDS mas nestas eleições foi repartida por IL e Chega. A fatia que fica à esquerda do PS é repartida há já muito tempo por CDU e BE, a que se juntaram PAN e Livre.
Estas fatias menores do bolo são também as mais instáveis e por isso mesmo as mais interessantes politicamente. Ali se encontram e cruzam múltiplas propostas de forças partidárias que querem ganhar assento no Parlamento e é ali também que o debate se torna mais solto e apimentado. Na medida em que a capacidade de «comer» parte destas fatias pode ser determinante eleitoralmente, o «centrão» não pode ignorar os temas que nestas franjas se debatem, o que significa PS e PSD se veem frequentemente obrigados a fazer o que mais temem: definir-se ideologicamente – o modo como Rio caiu na esparrela de discutir a prisão perpétua ou o modo como o PS procurou driblar mas não evitar o tema dos direitos laborais são exemplos dessa força dos extremos na definição da agenda de «centrão».
É justamente a agenda que se consegue impor durante a legislatura que vai determinar, pelo menos parcialmente, o tamanho da parte do bolo que cabe aos extremos. À direita, IL e Chega, saídos das eleições com inegável força, trarão para a agenda política temas velhos com aparência de novos, seja o liberalismo dos anos 80 recauchutado e bem embrulhado, seja uma visão da política como coisa intrinsecamente corrupta, só regenerável pelo providencialismo de um «duce» iluminado. Coisas velhas mas ainda vendáveis, que vão pressionar o PSD, obrigando a escolher entre a aproximação a estas ideias e o risco de ver fugir o seu eleitorado mais «direitista». Deixá-los. O que verdadeiramente me interessa é o que pode acontecer à esquerda.
A não ser que algo de inesperado aconteça, vamos atravessar uma legislatura completa com uma esquerda bastante fragilizada. A única vantagem que daí decorre não pode ser desperdiçada: tempo para se pensar enquanto projeto, encontrando formas de aproximação, coexistência e cooperação. Estamos habituados ao contrário, já que a esquerda de que falo sempre viveu num regime de fragmentação, muitas vezes fazendo dos parceiros próximos maiores inimigos que aqueles que verdadeiramente devia combater. Marxistas-leninistas, trotskistas, maoistas, ortodoxos e heterodoxos de várias cores e feitios, todos entregues a densos e inesgotáveis debates, mais fora que dentro do Parlamento, para falar verdade. O cenário já não é esse, bem sei, mas custa-me ver como CDU e BE raras vezes partilham o crédito sobre o que foram conseguindo em conjunto. Cada um destes partidos parece achar que apenas à sua ação se fica a dever o que a «geringonça» teve de bom, de tal forma que se fica com a ideia de que cada um remou por si, sem levar tão longe quanto possível um trabalho de convergência que talvez tivesse pressionado o PS de forma mais eficaz. Importa agora que a esquerda seja capaz de agir de forma diferente.
Não se trata, evidentemente, de negar as diferenças, nem sequer de procurar apenas as convergências. Importa, isso sim, criar um espaço de debate aberto e dinâmico, com base no qual se defina uma agenda que traga para o centro da ação política os temas e os problemas determinantes para aquilo a que podemos chamar uma «política de esquerda». Interessa contrapor à agenda liberal e ao populismo «chegano» uma outra agenda. Temas abertos, discutidos sem preconceitos, sabendo que há discordância em alguns aspetos mas concordância no essencial. Temas incontornáveis e que importa discutir:
- O trabalho e as suas transformações, incluindo a precarização mas também o RBI;
- O peso da herança colonial e a necessidade de combater manifestações de racismo estrutural ainda presentes na nossa sociedade;
- O projeto europeu, incluindo a discussão do incremento ou rejeição do federalismo;
- Ajustamento dos instrumentos fiscais a uma economia financeira cada vez mais desmaterializada;
- Necessidade de medidas ambientais eficazes, incluindo a discussão em torno do decrescimento.
Outros temas podiam ser referidos, mas o que me parece importante é aprofundar a vontade de discutir, divergindo ou convergindo, pouco importa, mas sempre com a vontade de aproximação e cooperação à esquerda. Se há uma coisa que estas eleições nos mostraram é que a competição dentro do mesmo «segmento de mercado eleitoral» não é incompatível com um crescimento conjunto (como sucedeu com IL e Chega) ou definhamento solidário, como BE e CDU perceberam.
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Obs: este artigo foi previamente publicado na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
Imagem: Ricardo SilvaRDM
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