E se a Abrilada tivesse sido uma aurora de esperança?

 

 

Há sessenta anos, teve lugar uma das tentativas mais emblemáticas de destituição de António de Oliveira Salazar e de mudança do rumo político do Estado Novo e do país em geral.

É a denominada Abrilada de 1961. Os dirigentes desta tentativa não eram oposicionistas. Os seus mentores pertenciam às esferas mais relevantes da hierarquia política e militar do país. Entre estes, mereceram destaque o ministro da Defesa Nacional, general Júlio Botelho Moniz, e o antigo presidente da República, o marechal Francisco Higino Craveiro Lopes.

Eis a história contrafactual de uma mudança política na sequência do sucesso da Abrilada.

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Tudo começou, como com o 25 de Abril de 1974, com queixas internas e tensões corporativas nas Forças Armadas. Contudo, rapidamente, as tensões adquiram um carater fortemente político.

Mas tudo avançou graças a uma grave crise de legitimidade do regime do Estado Novo. Desde logo demonstrada pelas fortes alegações de fraude nas eleições presidenciais de 1958 – as primeiras em que um general no ativo, Humberto Delgado, um dos oficiais do 28 de Maio de 1926, concorreu contra o regime e mobilizou um forte apoio popular, recusando desistir. Em 1959, a Constituição de 1933 foi alterada para substituir a eleição direta do presidente da República pela eleição por um colégio eleitoral restrito e controlado, formado pelos deputados da Assembleia Nacional, pelos procuradores da Câmara Corporativa e pelos representantes municipais de cada distrito ou de cada província ultramarina não dividida em distritos e ainda pelos representantes dos órgãos eletivos com competência legislativa dos territórios ultramarinos.

Ainda em 1959, o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, pôs em questão as restrições das liberdades e a falta de justiça social, o que levou ao seu exílio. Uma situação que teve um impacto profundo na Igreja Católica Romana, até então um dos pilares mais sólidos do regime.

Como jovem oficial, Júlio Botelho Moniz tinha sido um apoiante entusiasta do 28 de Maio de 1926, o golpe de Estado que derrubou a Primeira República e abriu o caminho para a instauração da Ditadura Militar e, posteriormente, do Estado Novo.

Mais tarde, foi ministro do Interior, cargo que o despertou para as frágeis condições de vida da generalidade da população portuguesa. Foi igualmente adido militar da Embaixada portuguesa nos Estados Unidos da América, situações que levaram Botelho Moniz a perceber a necessidade cada vez mais imperiosa de reformas profundas no país.

Progressivamente, Moniz preconizava um reformismo que atacasse o que, na sua ótica, eram as principais debilidades do regime: a promiscuidade entre o poder político e os grupos económicos; o nepotismo; a inflexibilidade politica e ideológica, que deveria ser superada através de uma abertura politica, com a inclusão da oposição não comunista; o desinvestimento na melhoria das condições sociais de vida das populações, a necessidade de reformar radicalmente a política ultramarina, num contexto internacional crescentemente desfavorável a Portugal.

O início do ano de 1961 foi marcado por um conjunto de acontecimentos que puseram Portugal na primeira linha da imprensa internacional. Em janeiro, um grupo liderado por Henrique Galvão apoderou-se do paquete Santa Maria, o primeiro desvio de um meio de transporte de passageiros a nível mundial. Em fevereiro, o MPLA desencadeou ataques a esquadras policiais e penitenciárias de Luanda. Em março, a UPA, posteriormente denominada FNLA; promoveu o massacre de todos os colonos e de milhares de trabalhadores africanos instalados em regiões próximas da República Democrática do Congo. A pressão da União Indiana sobre os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu aumentou de tom. Nas Nações Unidas, as criticas à política ultramarina portuguesa subiram de tom. Até então, os países ocidentais tinham tido uma atitude benevolente com Portugal. Mas com a ascensão de John Kennedy à presidência dos Estados Unidos da América, a situação mudou. A nova política preconizava a aproximação dos norte-americanos aos movimentos de descolonização, a fim de conter a penetração política da União Soviética em África, que viria a resultar na votação favorável de uma resolução apresentada ao Conselho de Segurança sobre a situação em Angola.

Nos meios políticos e militares reformistas do Estado Novo, estes acontecimentos e a retirada do apoio norte-americano causaram um profundo impacto e pressionam a passagem a uma ação mais firme.

Júlio Botelho Moniz, ministro da Defesa Nacional, contava com apoios bastante fortes na cúpula das Forças Armadas: o ministro do Exército, coronel Almeida Fernandes; o subsecretãrio do Estado do Exército, coronel Costa Gomes; o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Beleza Ferraz; o chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general Albuquerque de Freitas, e os comandos das regiões militares. Numa posição de neutralidade expectante, estavam o ministro do Interior, coronel Arnaldo Schultz e o chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Sousa Uva. Fora da hierarquia militar, Moniz teve o apoio entusiasta do antigo presidente da República, o marechal Francisco Craveiro Lopes, que tinha uma adotado uma posição cada mais crítica em relação a Salazar. Foram estabelecidos contactos com Marcello Caetano, que foi convidado para a liderar um Governo pós-Salazar.

Fiéis a Salazar, só o ministro da Marinha, Quintanilha Dias, o subsecretário de Estado da Aeronáutica, coronel Káulza de Arriaga, e o chefe do Estado-Maior da Armada, general Câmara Pina, e o antigo ministro da Defesa Nacional, general Santos Costa.

Moniz enviou uma carta a Salazar e teve reuniões com o chefe do Governo nos dias 28 e 29 de março, no qual expôs a necessidade de reformas profundas e prementes no Estado Novo.

É aí que se verifica uma ponto de viragem em relação à história real.

Na história real, Moniz perde um tempo valioso apos as reuniões com Salazar, chegando ao ponto de tirar alguns dias de férias no Algarve e deixar que um dos seus principais aliados, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Beleza Ferraz, se ausente do país em missão oficial.

Na história contrafactual, Botelho Moniz compreendeu que Salazar não cederá e deu ordens para lançar a Operação Aurora, posicionando as unidades militares em locais estratégicos do país para lançar o golpe para afastar Salazar.

Moniz tinha uma esperança, embora ténue, de afastar Salazar respeitando a legalidade constitucional.

No dia 31 de março, Moniz expôs ao presidente da República, Américo Tomás os argumentos anteriormente apresentados a Salazar e exigiu a demissão do chefe do Governo, com um ultimato de 48 horas.

Perante a relutância de Tomás, ficou decidido que o golpe em preparação passaria também pela recondução de Craveiro Lopes à presidência da República.

Na madrugada de 5 de abril, forças militares assumiram o controlo dos principais pontos estratégicos de Lisboa e do país.

Ao longo do dia, tornou-se evidente que a generalidade das Forças Armadas estava do lado do movimento, ou pelo menos, numa posição de neutralidade. Algumas unidades militares, como os para-quedistas, ligadas a Káulza de Arriaga e Santos Costa, tomaram posições, mas recuaram, perante a dimensão da adesão ao golpe. A Legião Portuguesa posicionou-se também contra o golpe, facto que implicou a sua extinção. A PIDE procurou não hostilizar o golpe, pelo menos abertamente.

Foi anunciada a destituição de Salazar e do seu Governo, a constituição de um Conselho de Salvação Nacional, o cumprimento da Constituição de 1933, nomeadamente do célebre artigo 8.º, tantas vezes ignorado e desprezado, que garantia a todos os cidadãos portugueses os direitos fundamentais e o apelo à reconciliação nacional.

Tomás e Salazar foram detidos e posteriormente exilados na Suíça. Foi anunciado o Conselho de Salvação Nacional como órgão de controlo das principais decisões politicas nacionais, formado por sete miliares, mais concretamente Craveiro Lopes, Botelho Moniz, Almeida Fernandes; Beleza Ferraz, Albuquerque de Freitas, Santos Uva e Arnaldo Schultz. Foi escolhido para presidente da República o marechal Craveiro Lopes, a quem foi confiada a responsabilidade de nomear um novo Governo. Confrontada com uma situação de facto consumado e perante a possibilidade de ser dissolvida pelos novos detentores do poder, à Assembleia Nacional ratificou a designação do novo chefe do Estado e atribuiu-lhe plenos poderes por seis meses.

Para chefiar o Governo, Craveiro Lopes escolheu Marcello Caetano. Botelho Moniz foi designado vice-presidente do Conselho de Ministros, para além de permanecer como titular da pasta crucial da Defesa Nacional.

Caetano era uma figura de grande prestígio e para ele iam as simpatias de muitos dos que desejavam uma liberalização política e um ritmo reformista nas políticas social, económica e ultramarina. Era o tipo de doutrinário conservador liberal, defensor da legalidade, adversário de violências, crente na persuasão como forma de atuação politica.

A abertura política interna

O novo Governo decretou um conjunto de medidas direcionadas para a liberalização gradativa da vida política nacional, nomeadamente a limitação substancial dos poderes da PIDE, doravante designada como Direção-Geral da Segurança, a redução do período de prisão preventiva, a reforma da legislação relativa aos crimes políticos e às medidas de segurança, a supressão da censura prévia aos meios de comunicação social, a adoção de nova legislação sindical que dispensava da homologação governamental as direções eleitas dos sindicatos, a autorização de regresso de muitos exilados (o bispo do Porto, Agostinho da Silva, António José Saraiva, Jorge de Sena, Humberto Delgado, entre outros) e o reconhecimento do denominado pluralismo cívico.

O pluralismo cívico era uma espécie de um sistema de partido dominante, no qual uma força politica, a União Nacional, entretanto renomeada como Ação Nacional Popular, detinha o poder político hegemónico, embora existissem outras forças politicas que podiam legalmente operar.

Através do designado pluralismo cívico, foi promovido o reconhecimento legal da oposição não comunista e não radical. Neste contexto, os liberais, os sociais-democratas, os socialistas moderados e os católicos progressistas integrariam o sistema político renovado. Em contrapartida, o comunismo e a extrema-esquerda revolucionária continuavam a ser considerados como intrinsecamente perigosos. Para estes setores políticos, que o novo poder entendia que promoviam a alteração subversiva das instituições e da ordem social, continuavam a vigorar as medidas policiais de investigação, prevenção e repressão, embora com garantias renovadas de legalidade. No âmbito da segurança pública, uma das primeiras medidas do Governo foi a demissão da cúpula da polícia política, incluindo dos até então poderosos Homero de Matos, Fernando da Silva Pais e Agostinho Barbieri Cardoso. Em sua substituição, foi designado Álvaro Pereira de Carvalho, que tinha a ambição de implantar em Portugal um serviço de informações e segurança segundo os padrões ocidentais.

Foi igualmente promovida a realização de uma reforma administrativa, com o propósito de descentralizar e desconcentrar a organização política e administrativa, reativando a autonomia das autarquias e das demais entidades da administração local e regional nos campos político, administrativo, técnico e financeiro, bem como o fomento da participação dos cidadãos e dos interesses organizados da sociedade civil na esfera política da administração local e regional.

Foi igualmente definida nova legislação eleitoral. As grandes novidades foram as seguintes: o alargamento de direito de sufrágio, passando a ser eleitores todos os cidadãos portugueses, de ambos os sexos, maiores ou emancipados, residentes no país, que soubessem ler e escrever ou que, não sabendo ler e escrever, fossem chefes de família, nos termos do Código Administrativo; a obrigatoriedade do recenseamento eleitoral; o voto em cabines, com boletins entregues pela mesa eleitoral, em vez do voto com listas previamente distribuídas pelas candidaturas, e facilmente distinguíveis entre si pelo tipo de papel ou formato; a vigilância do escrutínio por representantes das candidaturas com acesso aos cadernos eleitorais; o acesso das candidaturas aos meios de comunicação social, a promoção de uma organização mais transparente do processo eleitoral, englobando instituições da Administração Pública e os tribunais.

Apesar de não terem sido permitidos partidos políticos, o processo eleitoral decorreu de forma relativamente livre. O recenseamento, tornado legalmente obrigatório, foi promovido de forma ampla. Não foram permitidos partidos políticos, mas foram reconhecidas associações cívicas com fins políticos. As diversas candidaturas tiveram acesso aos cadernos eleitorais e à fiscalização da votação. Contudo, a desproporção de meios e recursos entre a Ação Nacional Popular e as demais forças políticas era substancial.

Portanto, no dia 1 de dezembro de 1961, as eleições para a Assembleia Nacional proporcionaram uma vitória clara â Ação Nacional Popular, mas tiveram a presença de outras forças politicas, que conseguiram representação parlamentar. A Convergência Democrática, que englobava a Ação Democrática e Social e a Ação Socialista Portuguesa, afirmou-se largamente como a segunda força política nacional. O terceiro lugar coube ao Movimento Democrático Português, no qual a influência comunista era grande, mas que englobou igualmente católicos progressistas e outros democratas. Os últimos lugares foram ocupados pela Convergência Monárquica e pela Liga Nacional 28 de Maio.

A razão do sucesso da Ação Nacional Popular esteve relacionada com a popularidade das políticas governamentais, as vantagens outorgadas pela forte influência na comunicação social e os financiamentos generosos de meios empresariais influentes.

Com a situação tendencialmente estabilizada em Africa e em Goa, estavam criadas condições para acelerar a liberalização politica.

Em 1962, a Assembleia Nacional teve como principal foco da atuação a revisão constitucional, que acabou por constituir uma verdadeira reforma da Constituição.

No que se refere á revisão constitucional, o propósito inicial de Marcello Caetano era promover uma revisão que beneficiasse os direitos e garantias individuais, bem como consagrar o federalismo e a autonomia progressiva dos territórios ultramarinos. Contudo, mantinha o demais sistema político inalterado.

Contudo, a pressão dos setores que defendiam reformas democratizadoras era cada vez mais forte, dentro e fora da Assembleia Nacional. E não eram apenas as formações políticas da oposição, que tinham agora representação parlamentar. No âmbito dos deputados eleitos pela Ação Nacional Popular, cresceu o número daqueles que defendiam que a meta da liberalização política deveria ser a instauração de uma democracia pluralista.

De uma forma discreta, mas convicta, o presidente da República, marechal Craveiro Lopes, mostrou-se ser um adepto da transição ordenada para a democracia pluralista, o que foi decisivo no posicionamento da cúpula das Forças Armadas, na qual pontificava o influente Botelho Moniz.

Caetano tinha dúvidas ideológicas em relação à democracia, que vinham da sua condição de ideólogos mais proeminentes do Estado Novo. Embora não aspirasse a mais do que uma modernização liberalizadora do Estado Novo. Caetano não ignorava que decisões difíceis tinham de ser feitas. Ou se entregaria nas mãos dos setores mais conservadores, que criticavam as políticas reformistas, ou tentaria mobilizar os elementos mais modernos e cosmopolitas da sociedade portuguesa.

Caetano começou a arrepiar caminho por esta última via, considerando que colocaria o país na rota de convergência com os padrões políticos e sociais da Europa Ocidental.

Após um conjunto de negociações complexas que envolveram as altas esferas políticas e militares nacionais, foi aprovada a revisão constitucional de 1962, quer pela Assembleia Nacional, quer em referendo popular, por 85% dos votos.

A revisão constitucional consagrou medidas de largo alcance, nomeadamente as seguintes:

– A obrigação do Estado fazer respeitar e assegurar o efetivo exercício dos direitos, liberdade e garantias e de promover o bem-estar social, assegurando a todos os cidadãos um nível de vida de acordo com a dignidade humana.

– O reconhecimento constitucional de novos direitos fundamentais, nomeadamente os direitos à emigração, à informação livre, trabalho, à educação, à saúde e à segurança social

– O reforço do papel legislativo e fiscalizador da Assembleia Nacional:

– A revalorização da função consultiva da Câmara Corporativa.

– O restabelecimento do sufrágio direto na eleição da presidente da República.

Com a reforma constitucional de 1962, Portugal deu um passo decisivo na sua evolução no sentido da democratização, que seria aprofundada nos anos seguintes com a implantação do sufrágio universal e o reconhecimento do multipartidarismo e da liberdade de organização e atuação de todas as correntes políticas.

Para além destas reformas substanciais, mereceu especial destaque a consagração do federalismo.

Portugal passou a ser a República Federal dos Estados Unidos de Portugal. A nova federação portuguesa englobaria Estados federados e regiões autónomas. Os Estados federados seriam Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Goa. As demais províncias ultramarinas passariam a ser regiões autónomas, bem como os arquipélagos dos Açores e da Madeira.

As regiões autónomas, embora dotadas de instituições políticas próprias, teriam um menor grau de autonomia do que os Estados.

Era consagrado um sistema de federalismo cooperativo. O Estado federal legislaria ou definiria as bases gerais da legislação e os Estados federados executariam ou desenvolveriam as bases gerais.

O poder federal tinha jurisdição nos seguintes assuntos: relações externas, defesa, moeda, políticas macroeconômicas e controlo de matérias-primas estratégicas. Em relação às demais políticas, previa-se que podiam assumidas pelos Estados.

O principal mérito do sistema federal português residiu no seu carater evolutivo, estando previsto a transferência de competências federais para os Estados.

A questão ultramarina e a política externa

O principal desafio do novo Governo foi a questão ultramarina, nomeadamente o agravamento da situação em Angola e a crescente tensão com a União Indiana por causa de Goa, Damão e Diu.

Craveiro Lopes, Botelho Moniz e Marcello Caetano estavam convictos de que somente uma política corajosa, inovadora e ousada poderia salvaguardar os interesses de Portugal, e em especial, os interesses das populações, e a melhoria do ambiente internacional.

Se Portugal conseguisse controlar a situação militar em Angola, e ao mesmo tempo promover reformas estruturais, a perceção da comunidade internacional, começando pelos aliados da Aliança Atlântica, s situação seria mais favorável para o lado português.

Perante a onda de violência que alastrava em Angola, foram enviadas tropas de Portugal, com o objetivo de estabilizar a situação, o que foi alcançado no último trimestre de 1961.

Embora a defesa da integridade da unidade territorial continuasse a constar do discurso público oficial, a argumentação para a defesa do Ultramar passou a dar crescente relevância à defesa dos direitos e dos interesses das populações do Ultramar e da sua sorte, caso o Estado português e as Forças Armadas as abandonassem.

Simultaneamente, foi aprovado um conjunto muito significativo de reformas políticas e administrativas, no sentido de assegurar o reconhecimento universal dos direitos de cidadania, por um lado, e por outro, da descentralização e da autonomia dos territórios.

Neste sentido, foi revogado o Estatuto do Indigenato, passando todos os habitantes dos territórios africanos a serem cidadãos. Além disso, foi publicado nova legislação que proibiu qualquer forma de trabalho obrigatório, até então parcialmente tolerado e amplamente praticado, e outras formas de exploração laboral. Uma decisão essencial que foi tomada foi a aplicação da nova legislação sobre o exercício das liberdades fundamentais ao Ultramar, criando condições para uma liberalização gradativa da vida cívica e política. Foi reconhecida a livre circulação de todos os cidadãos em qualquer parte do território nacional e foi suprimido o respetivo controlo policial e administrativo.

A nível da organização política, foi decidida a autonomia política e administrativa dos territórios, o alargamento do direito de voto, a eleição das Assembleias Legislativas por sufrágio direto, a realização de eleições para as autarquias locais e a descentralização de competências do Governo central para as instituições dos territórios.

No plano económico, foi liberalizada a circulação de bens e serviços, regulada no âmbito do sistema de pagamentos interterritoriais. Foram também criados incentivos à implantação de indústrias e ao investimento estrangeiro e foi reforçado o investimento público em infraestruturas conducentes ao desenvolvimento dos territórios.

No plano social, foi definido um plano ambicioso de desenvolvimento social, baseado numa estratégia psicossocial junto das populações. Este plano, que foi aplicado primeiramente em Angola, mas que foi alargado a outros territórios, previa o realojamento massivo das populações rurais em povoações novas construídas de raiz, com estradas, abastecimento de água, lojas, escolas e serviços de saúde, a concessão de ajuda financeira e títulos de propriedade e a aplicação gradativa dos recursos militares em ações não militares, como instrução, ajuda médica e construção, entre outras. Também foi feita uma aposta no desenvolvimento do sistema educativo, incluindo a criação de universidades em Luanda, Lourenço Marques e Goa.

No 5 de outubro de 1961, Craveiro Lopes anunciou publicamente a transformação do Estado português num Estado federal. Craveiro Lopes advertiu que o projeto federalista assetava numa evolução progressiva e reformista.

Em termos diplomáticos, Portugal assumiu gradativamente que a sua nova política ultramarina tinha como finalidade promover assegurar o progresso e a autonomia progressiva dos seus territórios ultramarinos, no sentido de, num futuro indeterminado, poderem escolher o seu destino, evitando interferências externas no processo. Inicialmente, esta orientação estratégica tinha sido comunicada de forma sigilosa junto dos países aliados da OTAN, do Brasil e de Espanha

A partir do momento em que Portugal conseguiu controlar a situação militar em Angola e promover uma agenda política reformista, o posicionamento dos aliados da OTAN e de outros países mudou.

Em 1962, a revisão constitucional consagrou o federalismo e a autonomia progressiva dos territórios ultramarinos.

O carater evolutivo do modelo federal português e o reconhecimento paulatino do princípio da autodeterminação granjeou uma ampla adesão nos territórios ultramarinos, incluindo de líderes nacionalistas como Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Eduardo Mondlane e Joana Simeão (Moçambique) e Mário Pinto de Andrade (Angola).

Amílcar Cabral, o mais proeminente líder nacionalista da África lusófona, declarou publicamente que se em Portugal houvesse um regime disposto a promover o futuro e o bem-estar do povo português e dos povos africanos lusófonos, em condições de igualdade, não havia necessidade de fazer a luta pela independência, porque a independência seria alcançada num quadro humano muito mais largo e eficaz do ponto de vista da História.

Em relação a Goa, Portugal adotou uma posição baseada no realismo diplomático. Aproveitou a crescente conflitualidade sino-indiana para aproximar-se da República Popular da China.

Em troca do reconhecimento diplomático da China comunista por Portugal e da transformação de Macau no porto franco para as transações económicas da China com o exterior, os chineses mudaram a posição perante a política ultramarina portuguesa. Sem deixar de defender publicamente os princípios da autodeterminação e da independência, a China passou a admitir discretamente que as populações dos territórios ultramarinos portugueses optassem por manter um vínculo constitucional com Portugal. A nova posição da China, então já com uma forte influência em África e no Terceiro Mundo em geral, foi decisiva para a mudança da posição de muitos países, que passaram a reconhecer a relevância do processo reformista português.

Perante a aproximação luso-chinesa, os Estados Unidos da América e a Grã Bretanha pressionaram fortemente a União Indiana a estabelecer uma solução negociada sobre a questão de Goa.

Em 18 de dezembro de 1961, foi alcançado um acordo entre Portugal e a India. Foi reconhecido o Estado de Goa no âmbito da federação portuguesa, dotado de ampla autonomia. Em contrapartida, Goa seria integrada num acordo aduaneiro com a União Indiana e a segurança militar do novo Estado seria assegurada por ambas as partes de forma coordenada, sob supervisão das Nações Unidas Gradativamente, as relações entre ambos os países foram melhorando em diversas áreas.

A política externa portuguesa passou a ser orientada por uma lógica pragmática. Sem prejudicar as alianças tradicionais, Portugal implementou uma política externa mais independente e flexível, baseada na diversificação das relações internacionais, na autonomia em relação aos alinhamentos rígidos da Guerra Fria e na promoção da capacidade de decisão politica soberana face ao sistema internacional.

Neste sentido, paulatinamente, foram estabelecidas relações diplomáticas com os países do Leste europeu e do Terceiro Mundo.

Foi feita também uma aproximação a Israel, permitindo a Portugal usufruir da cooperação militar, técnica e económica daquele pais e da sua influência relevante no continente africano.

A nível da lusofonia, foi negociado com o Brasil um novo Tratado de Amizade e Cooperação, que formalizou a Comunidade Lusíada entre ambos os países, reforçou a cooperação bilateral em diversos domínios e reconheceu a denominada cidadania lusófona, enquanto instrumento jurídico de reconhecimento a todos os cidadãos de vários direitos comuns no espaço lusófono.

A transformação económica e social

Como resultado da estabilização da situação ultramarina, da liberalização política gradativa em direção á democracia pluralista e da melhoria do ambiente internacional, Portugal vivenciou na década de 1960 o período de mais rápido crescimento da sua história, falando-se inclusive no “milagre económico português”.

Estes anos podem ser vistos como a versão portuguesa daquilo que nos países anglo-saxónicos se chamou a “Golden Age” do crescimento económico do pós-guerra.

Os principais fatores do acelerado crescimento económico foi a inserção proativa nos mercados internacionais, a prossecução de uma política de fomento industrial, com a liberalização dos regimes do condicionamento industrial e das barreiras aduaneiras, a existência de uma população relativamente jovem e em forte crescimento, o aumento da produtividade, proporcionado pela aposta na qualificação da população, e a abundância de matérias-primas energéticas, nomeadamente resultado da exploração do petróleo em Angola, São Tomé e Príncipe e Timor.
A rentabilidade das empresas e os rendimentos do capital aumentaram, bem como os salários. Como resultado, os padrões de vida de largas camadas da população elevaram-se significativamente.

Foi publicada legislação de modo a garantir a melhoria das condições laborais dos trabalhadores, a liberdade organizativa dos trabalhadores e do patronato e o reconhecimento de novos mecanismos de resolução nos conflitos laborais

Foram concretizados projetos infraestruturais de largo alcance tais como: o lançamento dos 350 quilómetros de autoestrada entre Setúbal e Braga; a construção do complexo hidroelétrico de Cabora Bassa, em Moçambique, o complexo energético e portuário do Lobito, em Angola, a modernização das redes rodoviária e ferroviária, a qualificação da rede de portos e aeroportos, o reforço da eletrificação; a ampliação das infraestruturas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais.

A década de 1960 foi também o período de implantação do Estado-Providência. O sistema de previdência social teve fortemente ampliado, de modo a assegurar a proteção social da população no seu todo. Foi durante este período que houve uma grande expansão do sistema educativo e estruturou-se um sistema de saúde público de acesso universal, contribuindo para a melhoria substancial das condições de vida das populações. Por exemplo, o sistema de saúde implantado por Portugal nos territórios da Africa lusófona tornou-se o mais equitativo e desenvolvido de todo o continente africano.

Nota Conclusiva

A Abrilada bem sucedida de 1961 tinha aberto as portas para uma via reformista para a resolução das grandes questões nacionais, incluindo a questão ultramarina.

Foi possível apostar na liberalização política e na autonomia progressiva do ultramar e, simultaneamente promover o mais rapidamente possível o desenvolvimento económico e social. Com mais prosperidade económica e justiça social, a restauração das liberdades democráticas e a resolução da questão ultramarina, num quadro de uma autodeterminação autêntica e sem interferências externas, foram mais fáceis de alcançar.

A convergência económica com os países ocidentais, a implantação progressiva de uma democracia pluralista e o desenvolvimento do Estado-Providência marcaram um novo ciclo na História de Portugal.

Portugal adotou um posicionamento renovado na prossecução da sua missão histórica universalista e na construção de uma ordem civilizacional baseada nos valores da liberdade, da justiça e do bem-estar social.


Imagem: Eduardo Malta / Presidência da República


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