mica costa-grande - memórias - manicómio - barcelos - franqueira - mosquitos - velhos tempos - memórias - cidade - galo de barcelos - s. joão de deus - casa amarela - maluqueiras - juventude - saudade

‘We smell the animal before you see it’: todos vemos mosquitos na Franqueira

 

 

Além do galo, Barcelos tem um reputado manicómio. Com uma secção urbana e outra campestre. Nenhum dos internados é da cidade. Imunes por contágio, cedo aprendemos a conviver com os labirintos da mente. Encurralados ou sem as graças do mar, o pior que nos pode acontecer é abandonarmos o jogo gloriosamente… defenestrados ou na ponta de uma corda.

Cultivamos a soberba dos simples. Não acreditamos no impossível e, sem outras convicções, gostamos de corresponder à ideia que fazem de nós.

No meio de uma vernissage numa galeria do Porto, Calvet de Magalhães, que foi meu mestre, atirou sem mais nem para quê:

— Ó Mica, você não é de Barcelos?

— Sou!

— Contaram-me que os tipos de Barcelos dizem à mãe: “Vou ali comprar tabaco!” e só voltam cinco anos depois… Desatou a rir, segurando com a língua a dentadura postiça. Achei a ideia épica. Pus-me a pensar, mas não me veio à memória ninguém que o tivesse feito… ou talvez… O meu tio Francisco que foi a salto para França… O Grilo, sobrinho preferido do Arantes da Casa do Café, que apareceu morto num canal de Antuérpia… Mas nenhum deles voltou… e o meu pai não conta, porque nos três anos que passou em Paris, voltava regularmente de férias. Havia ainda o Usted, meu vizinho, que, logo depois das filhas nascerem, embarcou num transatlântico e perdeu-se na pampa Argentina. A mulher, operária da TEBE criou as filhas sozinha. Agarrou-se aos santos, e, na igreja dos Capuchinhos, fazia responsos a Santo António para ajudar as pessoas a encontrar objectos extraviados.

“Bendito e louvado seja Santo António/ sol brilhante que em Lisboa, França e Itália, deu luz a mais rutilante:/ó beato Santo António, que ao monte Sinai subiste;/ o teu Santo Breviário perdeste,/ em busca dele voltaste mui triste e uma voz do céu ouviste:/ “António, torna atrás, o teu santo Breviário acharás;/ em cima dele Jesus Cristo vivo, três coisas lhe pedirás:/ o perdido achado, o esquecido lembrado, e o vivo guardado.”

Rezava isto nove dias seguidos à mesma hora, mesmo que o objecto aparecesse no dia seguinte. Um dia, Usted bateu-lhe à porta. Trazia as ferramentas de marceneiro, como se voltasse do trabalho. Foi um milagre. Os vinte e cinco anos de preces da D. Joaquina trouxeram de volta o saco das ferramentas e com elas o marido, velho e a falar castelhano à italiana. Mais tarde morreu em casa. De Mendoza à Terra do Fogo, procurei marcenarias, entrei em algumas e perguntei sem sucesso, “se por casualidad” em tempos lá tinha trabalhado um português. Há também o Costa-grande. Um gigante do Brasil que, numa das raras visitas à família de Vila Frescainha de São Pedro, roubou a namorada ao filho e teve com ela mais cinco filhos… um era o meu avô. Nesta família de republicanos profanos e amantizados, a primeira foi a Quinhas, que por uma daquela coincidências fatais, nasceu no dia 5 de Outubro de 1910. Na velhice era tão cega como a justiça. O genro levou-a ao oculista. Puseram-lhe um óculos que quase lhe corrigia a miopia extrema. Num segundo, atirou com eles para a mesa: “Cruzes! Santa Luzia milagrosa! Eu num quero isto p’ra nada! Parece que me está tudo a cair em cima. Com’é que eu posso ir daqui p’racolá qu’as coisas assim tão perto?!”

Chegou finalmente a minha vez de partir.

Fui de férias para Itália, continuei para Istambul, Teerão e Katmandu. Cada vez mais longe, terminava os postais com um: “Beijos mãe, estou a chegar!”. Levei a VW até à China. Fiz a pé o Tibete. O Japão de junco e regressei de comboio pela tundra e pela taiga. Tal como previsto, só voltei a ver a família quatro anos e meio depois…

Barcelos é um buraco que expele bandas pop de vanguarda dos La La La Resonance, Killimanjaro, Black Bombaim, Glockenwise, Astonishing Urbana Fall, a This Isn’t Luxury. Até fadistas. A Gisela João, é neta do Escondidinho da Rua da Palha, que, no verde tinto, concorria com a tasca do meu pai… (para falar verdade e honrar a memória dele, não!… tinto, ninguém tinha como o nosso!) O perímetro urbano é tão pequeno que, com algum fundamento, tenho a sensação de conhecer toda a gente. Dos dois deputados que temos no Parlamento, a Ana Maria é minha prima e o Zé Maria colega de liceu e filho, ele próprio, de outro conhecido taberneiro.

Barcelinhos fica do outro lado do rio. Que outra cidade tem, na margem oposta, um diminutivo de si própria? Cada qual com a sua corporação de bombeiros que se ataca furiosamente com jactos de água enquanto a casa arde…

Porque é o maior concelho rural do país, às quintas, acontece no burgo a melhor feira semanal. Já foi monumental quando havia gado. Os tractores aposentaram os bois e acabou o pitoresco pesadelo das vacas de oitenta e nove freguesias a despejar bosta na cidade. Ser o maior concelho de Portugal, numa economia medieval, gerava grandes fortunas. Nun’Álvares Pereira, um dos trinta e dois filhos de um clérigo, ele próprio filho do barcelense Gonçalo Pereira 97º Arcebispo de Braga, foi o 7° Conde de Barcelos, general-mor do reino, responsável pela independência de Portugal e o homem mais poderoso do país no Século XIV. Os seus descendentes, a partir de 1640 e até 1910, foram Reis de Portugal além de Imperadores do Brasil, mas antes de tudo eram Condes e Duques de Barcelos. Numa escala modesta, a minha família vive há gerações das propriedades de um brasileiro retornado do século XIX. Enquanto Colombo chegava às Caraíbas, no mesmo ano de 1492, Pêro de Barcelos, andava pela Gronelândia e o Labrador. Aprendeu a salgar e secar os grandes peixes de águas frias, para comer na viagem. Hoje na Península Ibérica, ninguém passa sem o bacalhau.

A cidade do galo é também a capital europeia do barro figurativo. Com um Museu respeitável, onde estão representados os ceramistas/surrealistas de Galegos. À grande Rosa Ramalho, que tem uma cabra aparentada à do Picasso, uma colunista da Colóquio Artes, perguntou se o conhecia.
— O Pi… quê? Nunc’oubi falar… Pensou melhor e perguntou: – Ó menina, espere lá, está a falar do filho-da-puta que me roubou a cabra?

Era e não era, porque apesar de ele e a Rosa aparecerem nas revistas de arte dos anos 70, nunca ouviram falar um do outro, e a cabra do malagueño é mais velha.

Mas o segredo do verdadeiro carácter da cidade é o manicómio.

Nós, pós-hippies (freaks), no verão, não frequentávamos as praias com a populaça. Preferíamos vaguear pela cidade vazia e enrolar charros no largo do Porta Nova, que, além do Borges e do John dos Passos, era a nossa forma de viajar. Nas tardes de Agosto andávamos todos de cabeça quente; nós, jovens rebeldes, e os malucos!… Eram superiores a nós, tanto em número como na potência das substâncias que ingeriam. Às vezes um subia ao chafariz, mas o discurso raramente terminava. Os enfermeiros aproximavam-se sorrateiros, enfiavam-lhe uma camisa de forças e arrastavam-no para longe debaixo de uma saraivada de insultos e empurrões:

— Deixem o homem em paz… Gorilas ignorantes! Fascistas do caralho…

Vivem ou viveram na Casa Amarela os grandes pensadores, os criadores e os cientistas que Portugal formal e conservador acabou por não ter. Naqueles verões abrasadores, aprendi mais com eles, que com os professores no resto do ano. A outra fatia da minha formação foi talhada pelos bêbados que mostravam sem pudor o que todos os outros cidadãos responsáveis cuidadosamente escondiam; as profundezas da alma.

O meu primo, de Lanhelas, é hoje um dos residentes da extensão agrária de São João de Deus para pacientes crónicos. Conhece o Eça de trás para a frente. Depois de recitar uma página inteira, na sombra bucólica dos castanheiros de Areias de Vilar, mira-me, silencioso e grave. Dou-lhe uma palmada no ombro e repito num ritual íntimo:

— Olha, Chico, quem devia cá estar era eu!

— Ó primo, num digas uma coisa dessas, tu sabes lá o que é ser maluco!…

Na última visita, a minha filha, a quem tive o cuidado de ensinar que o sucesso depende da inteligência, testemunhando mais um exercício de memória do Chico, perguntou perplexa:

— Pai, porque é que ele está aqui?

Respondi peremptório:

— Nunca gostou de trabalhar.

contacto visual - páginas web - internet - digital - online

1ª Página. Clique aqui e veja tudo o que temos para lhe oferecer.vila nova online - jornal diário digital generalista com sede em vila nova de famalicão

VILA NOVA, o seu diário digital. Conte connosco, nós contamos consigo.

Se chegou até aqui é porque provavelmente aprecia o trabalho que estamos a desenvolver.

VILA NOVA é cidadania e serviço público.

Diário digital generalista de âmbito regional, a VILA NOVA é gratuita para os leitores e sempre será.

No entanto, a VILA NOVA tem custos, entre os quais a manutenção e renovação de equipamento, despesas de representação, transportes e telecomunicações, alojamento de páginas na rede, taxas específicas da atividade, entre outros.

Para lá disso, a VILA NOVA pretende produzir e distribuir cada vez mais e melhor informação, com independência e com a diversidade de opiniões própria de uma sociedade aberta. A melhor forma de o fazermos é dispormos de independência financeira.

Como contribuir e apoiar a VILA NOVA?

Se considera válido o trabalho realizado, não deixe de efetuar o seu simbólico contributo sob a forma de donativo através de mbway, netbanking, multibanco ou paypal.

MBWay: 919983484

NiB: 0065 0922 00017890002 91

IBAN: PT 50 0065 0922 00017890002 91

BIC/SWIFT: BESZ PT PL

Paypal: pedrocosta@vilanovaonline.pt

Envie-nos os seus dados e na volta do correio receberá o respetivo recibo para efeitos fiscais ou outros.

Visite também os nossos anunciantes.

Gratos pela sua colaboração.

Convento e Igreja da Franqueira classificados monumentos de interesse público

Deixe um comentário