Vila Nova de Famalicão exibe, desde há dias, o Circo de Papel, um espetáculo de circo contemporâneo, de seu simbólico nome “Bairro” a que tive a feliz oportunidade de assistir em duas diferentes ocasiões: a primeira, na estreia, em exibição destinada a um público predominantemente adulto, a segunda, em exibição destinada às crianças.
“Bairro” apresenta-nos a história de uma comunidade onde vivem o ‘Dono Disto Tudo’ e os seus escravos. A essa comunidade chega um estrangeiro, malvisto e malquisto, que acabará por transformar aquele pequeno mundo, representação de todo o mundo em que vivemos. Com base num tipo de texto satírico, que entremeia os mais diversos momentos de magia circense, “Bairro” acaba por apresentar uma crítica social mordaz à forma como vivemos subjugados pelo poder do dinheiro, uns porque o detêm outros porque dele dependem para sobreviver.
No entanto, a dado passo, já quase no seu final, o povo, movido pelo estrangeiro com quem ninguém queria conviver e ajudar, resolve dar uma volta na situação e expulsar o terrível senhor daquele mundo.
Mas tudo acaba por terminar em bem para todos, dado o regresso deste último com um profundo arrependimento por todos os males cometidos para com os demais. E o equilíbrio assim se restabelece.
Parábola de história universal em tom moralista, como não podia deixar de ser, “Bairro” deixa a pensar graúdos e mais miúdos. Se os graúdos assistem ao espetáculo e se divertem pela qualidade dos intérpretes e números apresentados, quiçá até sem dar à narrativa o devido valor de contextualização apesar, mesmo quando soltam algumas gargalhadas, e se vão embora, depois do show, na sua grande maioria como se nada daquilo lhes dissesse respeito, os miúdos, com a ingenuidade e sinceridade que se lhes reconhece, vêem-no vivendo-o. É assim que, em duas diferentes ocasiões da narrativa, se revoltam e enxovalham o ‘Dono Disto Tudo’ gritando, alto e bom som a quem os quiser ouvir. Na primeira dentre elas, “Dá-lhe uma sova! Dá-lhe uma sova! Dá-lhe uma sova!” incitando Pipa, o capataz pau-para-toda-a-obra – que remédio! -, a bater-lhe quando é despedido, abandonando-o à sua sorte porque, desrespeitando os valores morais, DDT contrata entretanto o jovem migrante esfomeado, mas que tem mais músculo e melhores dentes, esquecendo-se dos serviços até então prestados por aquele, que tão úteis lhe haviam sido, e de quem deveria também cuidar. Mais à frente na narrativa, o público mais pequeno reage de forma em tudo semelhante, apenas com um discurso diferente, quando DDT, afirmando-se senhor absoluto, decide que não precisa de ninguém, nem mesmo do seu amor – ex-amor diz ele – porquanto todos estão contra si. “Vai-te embora! Vai-te embora! Vai-te embora!”, clamou a plateia.
No final, é claro que tudo acaba em bem. DDT reconhece os seus erros: “Ninguién me quiere que soy malo.” O arrependimento e a escolha do caminho certo são a única saída possível para uma sã convivência entre todos.
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Por estes dias, vive-se em França uma onda de contestação gigantesca. Emmanuel Macron chegou ao poder há pouco mais de ano e meio, substituindo um presidente inglório, François Hollande. Mas Macron parece não ter percebido o motivo pelo qual foi eleito, trabalhar para o bem comum.
A França é, continua a ser, um dos grandes potentados europeus. Contudo, vive a braços com um problema que afeta a sociedade europeia desde há décadas, apesar de toda a inovação e revolução tecnológica a que assistimos. e que se traduz em crescimento económico anémico, falta de emprego e baixos rendimentos para boa parte da sua população. Uma conjuntura como a atual, agravada pela alta do preço dos combustíveis, só poderia desembocar numa grave crise social de que os “coletes amarelos” são apenas a ponta do icebergue.
O mau estar social tem sido o responsável pela impopularidade sucessiva de vários presidentes – em França, mas não só – que começou ainda François Miterrand estava no poder. De ano para ano, de mandato para mandato, os cidadãos vão sentindo a perda de direitos e rendimentos, o que acaba por causar este tipo de irrupções provocadas por grupos mais zangados com o estado da situação.
De facto, a sociedade ocidental, construída com base em entendimentos redistributivos, que tiveram como seu ideário de fundo a social-democracia e a democracia cristã, permitiu a melhoria das condições de vida a milhões de pessoas no período que se seguiu à II Grande Guerra. Mas lentamente esse edifício tem vindo a ruir e a sucumbir sob um modelo económico neoliberal fomentado por ideologias que defendem a liberdade a qualquer preço e em grande parte estimuladas e/ou facilitadas pela revolução tecnológica acelerada do presente.
Tempos assim traduzem-se, no plano histórico, por agitação social que, por vezes, são propícios ao emergir da violência. A acentuada divisão de rendimentos, que tem implicado a diminuição da classe média e uma regressão no progresso social sentida por (quase) todos, há de acabar por resultar em tragédia.
Os sinais de tempos sombrios estão à vista de quem os qu(is)er ver: pulverização do espetro político, com perda de influência dos partidos tradicionais e consequente crescimento de partidos radicais, em particular na extrema-Direita política. Se, por ora, é certo que parecem querer enquadrar-se no sistema político eleitoral e daí têm retirado resultados que, em alguns casos, já lhe estão a permitir chegar ao poder por essa via, o problema pode evidenciar-se, de forma bem mais séria, mais à frente no tempo, se conseguirem evadir-se às regras democráticas de exercício de poder como o demonstra uma análise simples da História do Século 20.
Emmanuel Macron parece estar certo – e o poder tem (quase) sempre razão, nem que seja pelo uso discricionário da força – quando afirma que são vândalos os envolvidos nos confrontos entre forças de segurança e “gillets jaunes” e que estes pagarão caro as afrontas cometidas. Contudo, o Circo de Papel demonstra também que o problema não radica nesse grupo de jovens que se decide a ultrapassar as marcas do aceitável, antes numa maioria silenciosa que não se atreve a dizer – mostrar – o que pensa, mas que, na verdade, contesta e corrói de forma sub-reptícia todo o sistema.
O Ocidente e a democracia, em particular, a Europa em que vivemos, tardam a encontrar respostas aos desafios que se lhe colocam e precisam de o fazer com urgência.
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