Imagine-se que a única condição para se ser o maior escritor português é ser o que vende mais livros, então o José Rodrigues dos Santos seria necessariamente o maior escritor português. A sorte é que as coisas não são assim em absoluto. Uma condição necessária ainda não é suficiente para definir um todo. Muitas outras condições se impõem para nos aproximarmos da verdade. E esta, mesmo quando supostamente alcançada, é sempre discutível, mais tarde ou mais cedo. Por exemplo, estou em crer que o Rodrigo Guedes de Carvalho é muito melhor escritor do que o homem do primeiro argumento, apesar de vender muitos menos livros. Basta para o efeito sugerir o critério da qualidade da escrita ou da densidade das personagens, que respiram, sentem e sofrem como nós. É como se qualquer um de nós pudesse ser uma dessas personagens e também apetecesse dizer, gritar e expressar o que nos vai no silêncio do pensamento. Mas não é de literatura que se trata. Sim, de verdades que parecem absolutas, ou permissivamente contagiantes.
O critério de avaliação continua a ser o quantitativo. Milhares de visualizações, milhares de selfies, repetidas declarações, sucessivas replicações, prolongado entretenimento, maior atração e mais ampla divulgação. Tudo viral e tudo contagioso. Maria Leal desafinada e desequilibrada, na sua frágil altura, enche discotecas e espaços virtuais para gáudio da boçalidade reinante. O presidente Maduro, com as suas fantochadas e diatribes, devidamente divulgadas e ampliadas, tudo faz para se perpetuar no poder, mesmo que para o efeito tenha de condenar todo um povo à fome e à miséria. Donald Trump, com o seu slogan “America First”, faz da política um negócio, do seu país uma coutada familiar e do mundo uma fonte inesgotável de oportunidades. O Bolsonaro, no Brasil, com as suas frases bombásticas, mente como ninguém e arrasa como poucos. Estes e outros exemplos propagam-se a uma velocidade viral, contagiam sem dó nem piedade, contaminam as relações pessoais e poluem qualquer ambiente ou mente sã. Num mundo normal, não seria admissível considerar como anedóticas frases como: «O erro da ditadura foi torturar e não matar.»; «A mulher deve ganhar menos porque engravida.»; «Os pobres deveriam ser esterilizados.» Tudo isto é mau para ser verdade, tudo isto é demasiado grave para ser ouvido, nada disto deveria ser dito sem que nada se faça. A liberdade de expressão não deveria ser confundida com a liberdade de insultar. Nunca poderão estar ao mesmo nível, pela simples razão de que a segunda não é liberdade, ou qualquer direito, mas sim libertinagem e ausência de lei.
Parece evidente que este é um mundo cada vez menos respirável. As políticas de Donald Trump e da China poluem muito, dão cabo dos ecossistemas e atiram-nos para a ratoeira da insustentabilidade. Os ditadores disfarçados de homens providenciais promovem a miséria, as divisões e as intolerâncias. E as Marias Leais deste mundo não fazem mal a ninguém, mas não deixam de ser um sintoma preocupante da nossa maneira de valorizar as coisas. Demitimo-nos de pensar, de intervir e de respeitar o bem público. Deixamo-nos contagiar, entreter, entediar pelo supérfluo e o acessório. Vamos na onda e consumimos o que todos consomem, gostamos do que todos gostam e votamos de forma irracional como forma de protesto. Vivemos como se não houvesse mais mundo amanhã. Saltamos de notícia para notícia, de vídeo para vídeo e de festival para festival. Deixamos a política para os políticos e para os falsos profetas. E assim começa o mal. O Homem está a “rebentar com o mundo” e não nos importamos. «Estamos a dar cabo da água, do solo, do clima, das pessoas, das comunidades. (…) Por exemplo, a substância química existente no plástico – tem hormonas muito parecidas com os estrogénios e têm um efeito semelhante aos estrogénios -, e depois quando vamos estudar os peixes em Crestuma, (…), nós apercebemo-nos de que eles estão a mudar de sexo.»[1] A qualquer altura, chegaremos à situação em que não é o homem que faz o mundo, mas o mundo que faz o homem. É até expectável que a espécie homo sapiens dê lugar a outra e o mundo como o conhecemos não seja mais o mesmo. Tudo isto porque um dia confundimos quantidade com qualidade, acessório com essencial, entretenimento com trabalho, desespero com esperança. Quando nos apercebermos, já o mundo nos moldou. Mas a natureza continua, mesmo que o contágio humano provoque tanto mal.
[1] Conferência (…), Manuel Sobrinho Simões
Imagem: Chutersnap
Se chegou até aqui é porque provavelmente aprecia o trabalho que estamos a desenvolver.
A Vila Nova é generalista, independente, plural e gratuita para os leitores e sempre será.
No entanto, a Vila Nova tem custos associados à manutenção e desenvolvimento na rede. Só um jornalismo forte pode garantir qualidade no serviço oferecido aos leitores.
Se considera válido o trabalho realizado, não deixe de efetuar o seu contributo, ainda que simbólico, sob a forma de donativo através de multibanco ou netbanking.
NiB: 0065 0922 00017890002 91
IBAN: PT 50 0065 0922 00017890002 91
BIC/SWIFT: BESZ PT PL