Peregrinação: Fernão Mendes Pinto, Aquilino Ribeiro, Fausto e João Botelho

Em 1863, dedicava Camilo Castelo Branco o romance O Bem e o Mal ao padre António de Azevedo, em reconhecimento da importância que o sacerdote tivera na sua formação literária. Fora, com efeito, o padre Azevedo, irmão do seu cunhado, que, em Vilarinho de Samardã, proporcionara ao rapaz de catorze anos o contacto com os clássicos portugueses e latinos. Pela mão dele conheceu Camilo a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: «Sou aquele que leu em sua casa as Viagens de Ciro, o Teatro dos Deuses, Os Lusíadas, As Peregrinações de Fernão Mendes Pinto, e outros livros, que foram os primeiros.» O livro de Fernão Mendes Pinto sempre foi um dos clássicos portugueses mais admirados pelo romancista de Seide. No conto “História de uma Porta”, o narrador, que podemos identificar com o jovem Camilo, vai às trutas a uma aldeia de Barroso. Surpreendido pelo anoitecer, e longe de casa, pede hospedagem a um lavrador. Conduzido ao quarto, que, no passado, havia pertencido a um padre, tio do dono da casa, o hóspede, antes de dormir, observa uns livros que por lá estavam. Ao jovem ávido de histórias, ao futuro romancista, cronista de amores, de aventuras e de desventuras, o único livro que lhe prendeu a atenção foi o de Fernão Mendes Pinto: «Antes de me deitar nos alvíssimos lençóis, olhei em todo o quarto, e vi a um canto uma rima de livros. Fui examiná-los e achei breviários, ripanços, um Flos Sanctorum, uns doze volumes em espanhol de um Saavedra, um Calepino, a Recreação Filosófica do padre Teodoro de Almeida, e outros que esqueci, menos as Peregrinações de Fernão Mendes, que levei comigo, para, como de facto, adormecer na primeira página, e dois in-fólios com os quais fiz travesseiro.» Fernão M Pinto

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um livro de viagens, um livro de aventuras: “Prodigioso livro de viagens”, sublinha João Botelho em entrevista ao Jornal de Letras (n.º 1228), a propósito do filme; «Formoso livro de aventuras, como não há segundo na língua portuguesa é a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto», qualifica Aquilino Ribeiro, no prólogo da adaptação que fez desse clássico da nossa literatura. Assaz meritório o trabalho de adaptação do texto, tornando-o mais acessível ao público juvenil, como fizeram Aquilino e Adolfo Simões Muller, entre outros. Adaptações ao público jovem leitor

Lamenta-se que o texto original não seja de leitura obrigatória no ensino secundário. Resta a consolação de poderem os professores de Português do 9.º ano optar pela versão de Aquilino Ribeiro, na educação literária, como obra de literatura juvenil. Na Prova Final de Português de Português do 9.º ano, em 2015, foi incluído um excerto dessa versão. Trata-se do relato de um naufrágio, que, no original, vem no cap. LXXVIIII: “Como nos perdemos na enseada do Nanquim, e do que passamos despois disso”. É um texto que sintetiza muito do que é este extraordinário livro

As indicações cronológicas muito precisas (“E esta desgraça sucedeu uma segunda-feira, cinco do mês de agosto do ano de 1542, pelo quê Nosso Senhor seja louvado para sempre”) conferem ao texto o ar documental, que, associado à primeira pessoa (aqui, como em boa parte do livro, do plural), é próprio do género memorialístico e autobiográfico. As indicações geográficas (“Nanquim”, “Sosoquerim”, “Xalingau”, “Conxinacau”) reforçam o caráter realista, referencial do texto; a sonoridade exótica dos topónimos espalha o perfume do oriente que envolve todo este livro de viagens; o vocabulário náutico que prolifera no texto (“singrando”, “soprados por ventos de oeste”, “mares tão cruzados e altos”, “alijar”; “correndo os navios à toa e à árvore seca”…) dá-lhe o sabor a mar, o colorido da expansão marítima portuguesa. O visualismo, o dramatismo das situações descritas, o movimento, a dinâmica descritiva conferem ao texto um cunho cinematográfico. A descrição do pavor vivido pela tripulação, a pequenez do homem perante as indomáveis forças da natureza (“um altíssimo e lancinante clamor”; “desesperançados de nos poder salvar”; “éramos como um berço na crista das vagas”; “tudo o que em nós ainda era ânimo desfaleceu”), revela bem o cariz antiépico que marca a obra, reverso de Os Lusíadas. Menos gloriosa, menos patriótica, mais humana, mais verdadeira. a Peregrinação de Fernão M Pinto

Adaptar este livro aos mais novos é, sublinho, um serviço cultural, cívico, tal como recriá-lo musicalmente, como fez Fausto, em 1982, no álbum “Por este rio acima”, ou como traduzi-lo na arte, sétima, das imagens em movimento, como agora fez João Botelho. E serviço educativo é os professores impedirem que os alunos percorram a escolaridade obrigatória sem conhecerem a Peregrinação, nem que seja nessas versões adaptadas. A audição atenta das magníficas canções de Fausto é um ótimo complemento intertextual e interdiscursivo na abordagem didática do livro. Pode-se, por exemplo, pôr em diálogo com o texto a que acima aludimos o tema “De um miserável naufrágio que passámos”. Em ritmo de corridinho, a canção mostra o mesmo pavor antiépico presente no texto, a miséria humana, a desventura de Fernão Mendes, dos portugueses no Oriente: “Choramos a nossa perdição / Dando muitas bofetadas / Em nós próprios sim senhor / Metidos num charco de água / Gritamos uma reza ao Salvador”. Tal como no filme de João Botelho, as músicas de Fausto são a banda sonora ideal para a leitura da Peregrinação.

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Imagem: Capa (detalhe) do livro Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Adaptação de Aquilino Ribeiro, Ilustrações de André Letria (Colecção Clássicos da Humanidade, da Sá da Costa Editora, em edição do jornal Expresso.

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