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João Catalão, programador cultural, no âmbito da participação no documentário de homenagem a Abbas Kiarostami – Cinco para Kiarostami, de Mário Macedo e Vítor Ribeiro – apresentado na primeira edição do Close-Up – Observatório de Cinema de Vila Nova de Famalicão, em 2016, produziu um texto que serviu de base à sua intervenção no filme. É este texto, na sua versão integral, que ora disponibilizamos aos leitores.
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Há circunstâncias que nos colocam desafios significantes. Foi o caso do filme O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, a que eu assisti em São Francisco. No caso concreto, pelo contraste entre o agigantamento particular do contexto e a temática dissonante do filme.
Só muito recentemente, por causa desta homenagem [realização do filme documentário Cinco para Kiarostami, de Mário Macedo e Vítor Ribeiro], é que voltei a vê-lo. Percebi agora que não foi acidental na altura o argumento incómodo da história. Não estava era ainda preparado para enfrentar a crueza do significado que o filme tinha então, e continua a ter para mim, agora. Digo isto porque um filme só me interessa verdadeiramente quando quebra essa membrana que o separa do nosso mundo habitado.
O cinema é por natureza permeável. Mas há uma enorme diferença entre a permeabilidade de um filme e a sua passagem para o lado de dentro. A minha relação com o cinema é constelacionalmente monogâmica. E tem a poética como centro e desdobramento. Não tem a ver com cinefilia nem com conhecimento. Embora o cinema como reflexão me interesse igualmente. É um espaço de transcendência. Um espaço de vivência e sobreposição colectiva da identidade. Kiarostami é um dos realizadores que faz parte desse meu campo expandido de interligações e afinidades. Vi os primeiros filmes dele no Rio de Janeiro, quando começava a descobrir-me, ao descobrir o cinema.
Suiseki é a arte japonesa de ver montanhas extraordinárias numa simples pedra. Na verdade não são pedras comuns. São pedras cuja grandiosidade suspensa passa facilmente despercebida. Kiarostami foi ao Japão filmar Like Someone in Love. Acabou por ser o seu último filme. A poética natural japonesa é uma perspectiva familiar ao cineasta, com a qual me identifico igualmente. Like Someone in Love termina com uma pedra. Ou melhor, com uma pedrada na vidraça de uma casa filmada pelo lado de dentro. No filme E o Vento Levar-nos-á, rodado logo a seguir ao Sabor da Cereja, Kiarostami cita um poeta persa: If my guardian angel is the one I know, he’ ll protect glass from stone. Se o meu anjo da guarda for quem eu sei, ele protegerá o vidro das pedras. Esta ressonância antiga, que descobri recentemente, dá ao final de Like Someone in Love um sentimento particular. Uma aparente consciência da proximidade do fim. E, ao mesmo tempo, uma exaltação celebratória da continuidade da vida na voz de Ella Fitzgerald. A voz que o quebrar ruidoso do vidro, que desfaz a tensão acumulada da cena, finalmente liberta. A voz da Ella Fitzgerald levou-me de volta ao começo. Levou-me de volta ao Rio de Janeiro. A pedra atirada contra a vidraça não é um suiseki japonês. Para transformar essa pedra furiosa na leveza de um suiseki era preciso uma espécie de milagre. Uma redenção em forma de paisagem. Kiarostami filmou o renascimento de um lugar depois de um terramoto em Através das Oliveiras. Terramoto, para mim, foi a morte do meu pai em 1988. O meu pai deixou-me numa carta, escrita pouco tempo antes, uma porta que dava para O Sacrifício de Tarkovsky. O renascimento foi o Rio de Janeiro. E a Paisagem na Neblina de Theo Angelopoulos. Há a transfiguração de uma árvore a ligá-los.
Foi só no filme seguinte, O Sabor da Cereja, que Kiarostami procurou uma verdadeira, e de algum modo necessária, redenção. Representada, de forma assombrosa, na passagem da escuridão do mundo interior da personagem central para o outro lado da rodagem; e filmada com a liberdade nascente do digital. Nessa paisagem habitual de montanhas destaca-se uma árvore em particular, uma árvore a entrelaçar os filmes de Tarkovsky, Angelopoulos e Kiarostami. É a árvore a que Kiarostami regressa para começar as lições de Ten on Ten. Depois de ter encerrado em Dez todas as personagens dentro de um táxi. Uma árvore cujo florescimento, no lado tornado visível da rodagem, é envolvido pelo relaxamento final dos soldados e pela música de Louis Armstrong. A música de Louis Armstrong, mas sem a sua voz. Sem a dureza da letra evocada. Louis Armstrong gravou dois discos com Ella Fitzgerald. Ella & Louis e Ella & Louis again. É como se houvesse através de ambos um fio misterioso a ligar o final de O Sabor da Cereja no Irão e Like Someone in Love no Japão. Para mim, essa conexão misteriosa é uma expectativa, que acredito ser mesmo real, de redenção. É por isso que para fazer esta homenagem a Kiarostami eu queria transformar a pedra que o anjo da guarda não consegue mais conter num suiseki. Uma cadeia de montanhas como a que Abbas Kiarostami percorre infinitamente de carro. Kiarostami também registou a transfiguração de uma pedra à beira mar no filme experimental Five, dedicado ao cineasta japonês Ozu. Uma pedra-ovo à espera de um Close-Up.
Em 2010, pus de pé, numa galeria de Braga, uma cerejeira com a copa feita de cadeiras. Tive de religar alguns pedaços do tronco. A cerejeira foi cortada porque tinha crescido demais e só servia para alimentar os pássaros. Foi a explicação que as minhas tias me deram para a terem cortado. Em 2010, as anilhas dos pombos-correios eram vermelhas. Cada cadeira da minha árvore tinha uma perna cor de cereja. A exposição chamava-se A Pesagem do Sol. A pesagem do sol é a leitura da posição do sol feita com um astrolábio ao meio-dia. Para mim, era um contraponto solsticial à estrela polar. O labor em conjunção com o assombro. As cerejas em conjunção com as oliveiras. Escolhi o jardim dos Biscainhos para esta homenagem porque é um lugar onde há montanhas invisíveis. Montanhas desenhadas pelas revoadas dos pombos-correios a partir de um pombal pagoda. O pombal pagoda do jardim dos Biscainhos é uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Na base das montanhas invisíveis do jardim dos Biscainhos há muitas árvores com histórias. Algumas foram plantadas por mim. Lembro-me, em particular, quando penso em Abbas Kiarostami, de uma figueira antiga que renasceu depois de ter sido atingida por uma violenta tempestade. Já foi habitada por bailarinos. Esta primavera deu uma sombra amarela. Apareceram agora debaixo da árvore para Kiarostami alguns brinquedos de criança feitos com fios e ramos. Parece o cenário de um filme que não vemos. Rodado do outro lado do mundo.
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Ver:
João Catalão, Sobre Abbas Kiarostami, em Cinco para Kiarostami, de Mário Macedo e Vítor Ribeiro
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