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Com premeditada radicalidade, Luís Serguilha vem empreendendo a missão de retransfigurar estética e semanticamente a Língua Portuguesa, Nada é sagrado para ele, ainda que sua faina não constitua profanação alguma do santuário linguístico onde se cultua a última flor do Lácio. Pois nada mais diferente do que a inconsequência de um vil perturbador é o trabalho sério de quem se dedica a renovar a língua, mesmo inobservando amiúde os cânones estabelecidos == ou por isso mesmo. Não há regra ou norma que possa configurar barreira para tão ativo desconstrutor de lugares-comuns e velhas sedimentações de práticas literárias acumuladas sem a oxigenação de novos experimentos. Serguilha sacode todo o edifício, até os fundamentos, em afã desenvolvido com o salvo-conduto que ele mesmo se atribuiu para penetrar no âmago da língua.
Há escritores que apenas se alojam no edifício do idioma, como um inquilino a mais, estendendo nas áreas de serviço os seus varais de textos, acionando de quando em vez a descarga hidráulica para levar, água abaixo, as letrinhas refugadas, rebarbas e aparas de um trabalho artesanal bem comportado. Maior do que um inquilino artesão, obediente ao regulamento do condomínio, temente ao deus vernáculo, é quem invadiu o prédio para devassá-lo nos mais recônditos vãos e mais secretos desvãos. É na casa de força que se instala, nas tensões de alta voltagem, no eletrizar máximo do verbo, alheio a riscos e perigos. Da inventividade insólita saltam faíscas e cintilam luzes. É a mais ousada combinação de elementos díspares, a mais arrojada associação daquilo que se supunha refratário entre si e inviável de amalgamar.
Antípoda do beletrismo, transgride o discurso literário convencional, aí incluindo as neoconvenções de pretensas vanguardas, instaurando nova retórica frontalmente anti-retórica. Nesse projeto, materializado em praticamente tudo o que vem escrevendo, inexiste, porém, o objetivo de propor um novo léxico literário, uma novilíngua. Não busca “reinventar a roda” do nosso Português. É a língua preexistente o seu material, sem monstrengos híbridos e com parcimônia de acréscimos neologísticos. Vale-se conscientemente do imenso arsenal da língua portuguesa, despertando um potencial que se achava adormecido, reenergizando palavras através de estruturações insólitas. Mobiliza, assim, toda uma riqueza lexical até então estigmatizada pelo generalizado preconceito discriminador de presumidas expressões anti-líricas, anti-poéticas, anti-literárias, dando direitos de cidadania textual a termos do jargão técnico e científico, nas mais inesperadas associações com o linguajar consensualmente aceito como literário e estético. Rompe-se, pois, a hierarquia entre palavras e o uso privilegiado destas em detrimento daquelas. Tudo é ingrediente adequado na busca de um novo processo expressivo, sem que sejam refugados termos pouco usuais no campo literário. O escritor, no caso, trabalha num campo maior do que a literatura, tal como é tradicionalmente compreendida. Empregam-se tanto palavras sonoras quanto as nem tanto; as que soam bem e as que soam duro, seguindo critérios de seleção diversos dos consagrados no “corpus” literário em língua portuguesa. Não há o propósito de afagar os ouvidos do leitor. Como naquelas paradoxais fábulas zen, há que suportar momentos agressivos para alcançar a iluminação.
A obra de Serguilha, mesmo que ”corporificando o silêncio da indiscernibilidade do mundo” é um rumor ininterrupto, onde ressoam múltiplas vozes, tendo como fundo constante os ecos do “big-bang” do verbo. Quase tudo é cosmológico na mensagem serguilhiana. De conteúdo enciclopédico, numa corrente contínua ele fala sobre praticamente tudo: abordando o geral, está no particular; abordando o particular está no geral, num vai-e-vém que não se nota, mas que funciona como eixo de sustentação do discurso, desdobrado em temas variados, mas recirculando sempre numa órbita de reintegração interna. Nele se distinguem personagens — o mergulhador, o tuaregue, o “leitor”, entre tantos outros–, mas os papéis que protagonizam têm raízes entrelaçadas num “script” abrangente. Todos juntos, nos diversos estágios da obra serguilhiana, compõem um vastíssimo panorama ôntico, no qual a literatura traduz a experiência existencial do autor e, ao mesmo tempo, desborda os limites da experiência individual, na medida em que abre trepidante horizonte onde são envolvidos os leitores. E o que proporciona a abertura aos que forem envolvidos, mantendo-se conscientes, é uma visão de mundo apaixonadamente libertária. Ainda que para alguns possa parecer hermética, desenha-se com clareza uma “weltanschauung” também violentamente apaixonada.
A “ visão de mundo” serguilhiana entrelaça o ôntico ao ontológico, o ser ao ente, como bem percebeu Chiu Yi Chih: …” isso não significa que o poema seja imagem do mundo no sentido de um espelho que mimetizasse a ordem sensível das empiricidades. Longe de cair numa imagem materialista da realidade ou ainda num transcendentalismo mistificador, a sua poesia nos coloca diante do fenômeno das catástrofes e das mutações, diante do “absurdo incandescente do cosmos” (SERGUILHA, 2011, p.122).
Luís Serguilha, o poeta famalicense autor de Plantar Rosas na Barbárie cujo texto, na voz de Hélio Pugliatelli, “é pura lava, ardente e ígnea, decorrente de permanente.erupção criativa e criadora.”
Desse modo, cada poema deverá ser visto menos como objeto de ser do que como objeto de poder capaz de ressacralizar o universo restituindo-o à sua fenomenalidade primeva e original”.
Embora não se possa obviamente cogitar de categorias ou gêneros literários na obra serguilhiana, nela se destaca o ritmo, sempre acelerado. É uma perpétua corrente que vai arrastando ideias e conceitos, corporificando a paixão inesgotável por “olhar o mundo”, “estando no mundo” e nele interferindo. Trata-se de um olhar antrópico que Serguilha compartilha na generosidade da criação efervescente, ainda que seja árduo olhar juntamente com ele tantas coisas que olhar sozinhos não poderíamos. Que não se busque, contudo, sequência ou linearidade nesse fluxo incessante, caudal que o próprio autor designa como “lahar”. Modéstia, já que seu texto não é um lodaçal de palavras, mesmo que vulcânicas. É pura lava, ardente e ígnea, decorrente de permanente.erupção criativa e criadora.
Obs: o livro plantar rosas na barbárie foi lançado pela Poética Edições, em setembro de 2017.