Em 1999, Amadeu Gonçalves esteve com José Saramago quando o celebrado escritor se deslocou a Famalicão para ser homenageado. Nesse encontro, ocorrido algum tempo depois da receção dessa “invenção diabólica” que é o Nobel, o nosso cronista ofereceu-lhe um trabalho com as suas reflexões sobre a sua obra. É esse trabalho que Amadeu Gonçalves agora retoma e dá a conhecer ao grande público, em primeira mão, o primeiro de sete ensaios.
Saramago, [nos livros] predilectos deste “leitor obscuro”, [soube] transmitir através da linguagem a magicidade efectiva e afectiva da ficção.
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MUNDOS
Diálogos da Interioridade
Uma crónica de memória sem ser de memória
(no 95.º Aniversário de Nascimento de José Saramago)
Em tempos idos, realizei um trabalho inédito que redigi a propósito da vinda de José Saramago a Vila Nova de Famalicão, em 27 de Fevereiro de 1999, quando o Município lhe atribuiu a Medalha de Honra. Assim, ofereci o original ao nosso escritor e fiquei com uma cópia, com dedicatória, escrevendo-a ele em frente à Casa de Camilo Castelo Branco, em Seide. Simplesmente, agradeceu. Este trabalho serviu de base para um outro, mais propriamente para a disciplina de Filosofia da Cultura em Portugal no Século XX, regida então pelo Professor José Gama. Também o tenho inédito, guardando-o ao lado da documentação e dos livros de José Saramago. Tenho, para ele, três estantes. Para alguns pode parecer pouco, para mim é mais do que significativo. Dedicatória em livro só no “Evangelho”, redigida naquela célebre cerimónia de apresentação em Braga, em 1993, numa Feira do Livro que tanta polémica causou. Dei o título inicial a este trabalho de “Diálogos da Interioridade” e coloquei-lhe o seguinte subtítulo: “aproximação à leitura de saramago por um leitor: fragmentos” e, depois, acrescentei o manuscrito “obscuro” após a expressão “leitor”. Tive um colaborador especial: o Professor Ivo Machado, com duas caricaturas e a música do poema “Manhã”, com arranjos do Prof. Carlos Carneiro. O sumário foi o seguinte: I) Diálogos da Interioridade – texto; II) Ditos, diga-se citações: “O Ano da Morte de Ricardo Reis, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”; “História do Cerco de Lisboa” e “Manual de Pintura e Caligrafia”; III) Referências Bibliográficas de José Saramago na Imprensa: artigos, obras.
Reescrevo, porque possivelmente poderá vir a ter alterações formais (em caso de acrescentos, colocarei parênteses rectos), a introdução que então elaborei para o trabalho focado (o da licenciatura). Desta forma, o que os quatro títulos de Saramago têm em comum, os predilectos deste “leitor obscuro”, é o facto de um escritor ter sabido transmitir através da linguagem a magicidade efectiva e afectiva da ficção [na recriação de um lugar outro, essa invectiva nietzschiniana]. Contudo, todos eles têm identificações próprias no conjunto da obra de Saramago, com temáticas internas muito específicas e vincadas e, ao mesmo tempo, outras de continuidade permanente.
Assim sendo, em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” encontrámo-nos com o encontro, senão encontros, mágico(s) e revelador(es) entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa: um encontro de encontros entre a invisibilidade fantasmática e ficcional de Pessoa e a realidade ficcional de Reis. Desenvolve-se a história numa Lisboa que assiste à plena ascensão do Estado Novo, assim como à plenitude dos fascismos europeus, para além das referências de alguns mitos da cultura portuguesa, caso do Adamastor, e evoca-se a personalidade literária de Camões, assim como a Festa da Raça a ele associado. Uma outra situação que Saramago nos descreve, nesta obra, é o ambiente exterior e interior de Fátima, isto é, o ambiente interior diz respeito precisamente ao espaço físico do santuário, enquanto que o exterior corresponde ao que se passa durante a viagem com os peregrinos.

N`”O Evangelho Segundo Jesus Cristo” evidencia-nos Saramago as suas próprias ambiguidades perante a temática teológica, isto é, Deus, o Cristianismo, o remorso ou o ressentimento na grande temática da literatura portuguesa, já bem patentes na literatura medieval (Manuel Simões). Mesmo Saramago, ao dizer-se ateu confesso, acaba por mostrar, no fundo, uma certa vivencialidade religiosa. Para além da questão do ressentimento, Saramago evoca-nos também a questão da Inquisição e das Cruzadas.
Temos, depois, a “História do Cerco de Lisboa” e a sua personagem, Raimundo Silva – uma espécie de alter-ego saramaguiano –, o qual reinventa a História de Portugal através de um enigmático “não”, já que a partir daqui reconta ou renarra efusivamente uma nova versão dos factos do cerco de Lisboa, a propósito dos cruzados não ajudarem D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa. Retoma aqui Saramago um dos ideais de Camilo, a reinvenção ou a invenção da própria história num plano ficcional; e o nosso autor torna a tal situação perante um dos mitos da fundacionalidade, o Milagre de Ourique.
Finalmente, “Manual de Pintura e Caligrafia”, em que está bem patente uma aliança dialogal entre a estética e a literatura, tomando o narrador como exemplo paradigmático da cultura portuguesa Francisco da Holanda, significando o renascer ontológico através da ficção. Esta ficção efectua a ruptura tradicional com a ficção portuguesa, esta até então voltada para um regionalismo literário que parecia não ter fim.

A grande diferença, destes “Diálogos da Interioridade” de 2002 relativamente aos de 1999, é precisamente a inclusão da temática da filosofia da cultura, a qual irá servir como ponto de apoio científico-teórico para a sua justificação, renovando os de 1999. Tal como nos diz Saramago na “História do Cerco de Lisboa”: “revendo aprende-se muita coisa.” Foi o que aconteceu.
“Os Diálogos” de 1999 serviram apenas como estímulo ensaístico, como exercício de escrita a ser aplicado ao estilo de Saramago. Mas também temos agora, nos de 2002, enquanto partes diferenciadas entre si, a secção “Jornalismo Cultural” e “Saramago em Vila Nova de Famalicão”, aparecendo os primeiros no contexto corporal do ensaio.
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Obs: título atualizado em 16032021.
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