Estamos no primeiro período de Estado de Emergência em democracia, devido à pandemia da Covid-19, como foi designada a doença causada pelo novo coronavírus que está a correr pelo mundo a velocidade galopante. Presentemente, no Estado de Emergência “soft” que vivemos, devemos ficar em casa e praticar o “distanciamento social”. Conseguiremos assim abrandar o ritmo de propagação da doença para valores dentro da capacidade de resposta aos infectados pelo nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Precisamente, o nosso SNS é o primeiro objecto de contemplação deste artigo. O nosso SNS e os seus cidadãos-funcionários-profissionais-de-saúde estão, desde o primeiro dia, na primeira linha de combate à pandemia. Como em tantas ocasiões da História de Portugal, estes heróis não estão a combater com os meios que gostariam de ter ou, sequer, os que precisam de ter, mas com os meios sobrantes de décadas de política de míngua. Criado na esteira do “Despacho Arnaut” de 1978, assim conhecido em reconhecimento do seu criador, António Arnaut, então Ministro dos Assuntos Sociais do II Governo Constitucional, o SNS concretizou o direito à proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social. A sua criação não foi obra unânime das diversas forças políticas e, desde o início, o SNS tem sido alvo de reiterados ataques, em nome da “liberdade de escolha”, da “economia de mercado”, da “contenção de gastos públicos” e de outros desideratos de forças vivas que entendem que a Saúde não deve ser um serviço prestado pelo Estado mas pelo Mercado, como qualquer outro serviço, a troco do seu justo valor. Levada ao limite, esta ideia libertária traduzir-se-ia no desmantelamento do SNS e na privatização das suas partes. Ao Estado, restar-lhe-ia o papel de “moderador”, sem dúvida tendo como interlocutores uma panóplia de associações privadas que agregariam os diversos interesses privados, como a Associação Portuguesa da Hospitalização Privada e versões exclusivamente privadas da Associação Portuguesa de Gestores Hospitalares, da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares, etc, etc, etc, com o controlo absoluto da Saúde em Portugal, bem como dos seus custos e respectivas margens de lucro. Seria até possível que o Estado fosse destituído do seu papel de financiador dos custos da saúde, substituído por seguradoras privadas que, também elas, não prescindiriam dos apetecíveis lucros de um serviço imprescindível, as mesmas que se recusam a cobrir custos de tratamentos de pandemias. Custa imaginar como seria um cenário de confronto entre este distópico “Serviços Privados de Saúde” e a Covid-19 mas, infelizmente, podemos ver a realidade dos EUA, país que encarna o sonho do “mercado livre”, o mesmo dos que têm vindo a erodir o SNS. Alardeado como país possuidor dos melhores cuidados de saúde (para quem os puder pagar) e que, podemos agora verificar, está completamente desarmado para lidar com um vírus que ataca ricos e pobres, segurados e não segurados…
Segunda contemplação: Tantos países ocidentais têm falta de meios para combater a pandemia, porque delegaram a produção de medicamentos, testes médicos, equipamentos hospitalares, etc, ao mercado, que por sua vez a delegaram à China que, por sua vez, teve que parar o fornecimento para conter o coronavírus no seu próprio país. De repente, todas as garantias da abundância providenciada pelo mercado livre desapareceram. Faltam máscaras, equipamentos de proteção individual, testes médicos, medicamentos. Os Estados montam encenações de normalidade e cooperação internacional enquanto, desesperados, esgravatam pelos recursos usando todos os meios ao alcance. Israel encarregou o seu temido serviço secreto, a Mossad, de obter testes de Covid-19 por vias travessas. As empresas norte-americanas de saúde compraram meio milhão de testes a uma empresa italiana, que os vendeu “às claras”, e usaram aviões militares americanos para os transportar, porque não havia voos comerciais. Os testes seriam suficientes para suprir as carências do norte da Itália, assolada pela pandemia, mas foram para o outro lado do planeta sem o conhecimento do desesperado governo italiano, enquanto a administração Trump enaltecia a “cooperação internacional”. Também em Itália, voluntários que produziram peças médicas vitais para salvar vidas nos hospitais correm agora o risco de serem processados por infringirem os direitos de patente. É o mercado a funcionar, dirão alguns…
Terceira contemplação: Os heróis de hoje são, sem dúvida, os profissionais de saúde, que não fugiram para o isolamento junto dos seus entes queridos, mas isolaram-se das suas famílias, mantendo-se nos seus postos de trabalho a combater os efeitos do vírus a tentar estancar a mortandade, reforçados por milhares de reformados e privados que deixaram as suas casas e acorreram aos hospitais para reforçar e render os primeiros, permitindo-lhes o imprescindível descanso. Mas não só, também os trabalhadores de setores essenciais, como os da distribuição alimentar, dos combustíveis, das fábricas que não fecharam mas acorreram a produzir o que de essencial falta por carência de fornecimento externo, etc… Os grandes administradores empresariais que ganham fortunas diárias, afinal, não são precisos para nada, enquanto os trabalhadores pior pagos, afinal, são os que mais falta fazem.
Quarta contemplação: Os esforços para conter a pandemia, parar transportes, fábricas, turismo, enfim, a Economia tal como a conhecemos, têm resultado em enormes quebras na produção de emissões poluentes, que anos de negociações e de acordos não conseguiram sequer aproximar-se. Hoje, quando abrimos a janela para as ruas vazias das nossas cidades, respiramos um ar invulgarmente puro. Salários e rendas à parte, será este um vislumbre do mundo que os ambientalistas propõem?
É difícil, nesta altura, vaticinar que mundo emergirá da pandemia da Covid-19, mas acho que será muito difícil justificar voltar ao que era antes…
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