‘Vergílio Ferreira tem a forma da minha mão’, diz Isabel Cristina Rodrigues

 

 

Vergílio Ferreira:

A nossa vida é toda ela feita de acasos. Mas é o que em nós há de necessário que lhes há de dar um sentido.


Vergílio Ferreira é de facto aquele cuja obra eu melhor conheço. (…) Os seus livros ensinam-nos a viver.

Vergílio reúne tudo o que para mim é importante num autor. (…) Na Tua Face (…), Até ao Fim e Em Nome da Terra são romances de uma beleza agreste, desafiadora, difícil, comovente. Quando os releio “muda-se-me o coração”.


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A Poética. O Fogo. O Silêncio.

Passo a passo, Isabel Cristina Rodrigues avança e escava a obra de Vergílio cada vez mais fundo, sempre em busca de novas e mais profundas leituras.

São três faces, três leituras da mesma pessoa, da mesma obra – Vergílio Ferreira – , quais peças de um puzzle aparentemente simples mas que se encaixam rigorosamente de modo a formar um perfeito triângulo as que Isabel Cristina Rodrigues, vencedora do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho 2016, promovido em parceria pela Associação Portuguesa de Escritores (APE) e a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, tem explorado desde o início da sua vida como investigadora. Isabel Cristina Rodrigues deu uma entrevista à Vila Nova. Aqui se fala sobre o trabalho vencedor – A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira, e sobre a obra de Vergílio Ferreira no seu conjunto, mas sobretudo, nesta conversa, a vida e a literatura são o centro das atenções, ou não fosse Vergílio, ele próprio, o autor que colocou o homem e a natureza dos seus problemas existenciais no centro do texto, no centro de tudo quanto escreveu.

Isabel Cristinas Rodrigues é…

Isabel Cristina Rodrigues é docente do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, após se ter licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Franceses) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. No contexto dos seus estudos sobre Vergílio Ferreira, um dos mais extraordinários e multifacetados escritores portugueses, nascido em 1916, dedica-se à edição crítica dos seus textos.

A Palavra Submersa vem ao de cima

A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira, lançado pela INCM em 2016, ano em que se assinalaram os 100 anos do nascimento desse extraordinário de língua portuguesa, galardoado com este prémio ora entregue pela autarquia famalicense, é o seu terceiro livro. Antes deste, a autora publicou também dois outros trabalhos em torno da obra desse enorme vulto literário que foi, é, Vergílio: A Poética do Romance em Vergílio Ferreira, lançado pela Colibri, já nos idos de 2000, e Vocação do Lume, publicado pela Angelus Novus, em 2009. Todos os três livros são ensaios que incidem sobre o trabalho do autor de do livro de todos conhecido Manhã Submersa, obra referencial sobre a forma como princípios morais opressores restringem as liberdades individuais e que também daria origem ao clássico filme de Lauro António com o mesmo nome.

A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira é um estudo literário que, como refere o site escritores.online, discorre sobre os temas essenciais da obra literária vergiliana. Citamos: “o caminho que vai da palavra ao silêncio; o silêncio como comunicação e suas aporias; a arte do silêncio; a comunhão, expressão máxima da comunicação, contraposta à incomunicabilidade; a palavra exteriorizada e a palavra interior; a palavra monologante e o diálogo; o silêncio como metáfora; o constante problema vergiliano da relação do homem com Deus ou com os deuses.”

Poética de romance

O primeiro livro de Isabel Cristina Rodrigues, A Poética do Romance em Vergílio Ferreira, que se encontra esgotado, por seu lado, procurou “descrever e sistematizar os vários ensinamentos teóricos que Vergílio Ferreira enunciou de acordo com a ficção que escreveu.” Como já referido, Vergílio aprofundou as temáticas existencialistas na sua obra, colocando sempre o personagem/narrador e os seus problemas e aquilo que o atormenta no foco das mesmas.

A palavra que queima, mesmo se em lume brando

Por fim, conforme a autora referiu através de uma entrevista de divulgação da Angelus Novus, Vocação do Lume é uma coletânea de textos produzidos para colóquios e revistas de literatura centrados “na manifestação literária do fogo como metáfora do limite e da sua ambivalência. (…) isto é, (…) a obra de Vergílio Ferreira foi-se consolidando, praticamente desde o seu início, sob o signo do lume, essa matéria incandescente de que é feito o homem, com as suas inquietações e os seus sonhos, procurando sempre na ambivalente experiência do fogo (que destrói, mas que ilumina e purifica também) uma implícita via de acesso ao sentido.”

Entrevista

Pedro Costa: Em que medida o prémio atribuído a deixou feliz e como poderá influenciar a sua carreira?

Isabel Cristina Rodrigues: A atribuição deste prémio foi uma surpresa e uma alegria, em primeiro lugar porque vem premiar um ensaio sobre a obra de Vergílio Ferreira e um ensaio publicado em 2016, no ano do centenário do nascimento do escritor. E apesar de eu amar de um fundo amor alguns outros escritores, Vergílio Ferreira é de facto aquele cuja obra eu melhor conheço, que mais vezes reli, que me instiga e comove mais, que me ensinou esse luxo insubstituível que é pensar. É o escritor que acompanhou o meu crescimento como pessoa e com quem aprendi muito, não só sobre a literatura, essa difícil arte de somar palavras, mas também sobre aquilo que viver significa, ou que, quanto a mim, deve significar. Porque os seus livros ensinam-nos a viver. Depois porque o Grande Prémio de Ensaio da APE tem o nome que tem, o nome de Eduardo Prado Coelho, que tanto dizia a Vergílio Ferreira (eles foram amigos) e que tanto me diz a mim também. Era um homem de uma inteligência fulgurante e de uma sensibilidade ao texto literário extremamente sagaz e informada, capaz de tornar visível o avesso da mais anódina sombra, descobrindo sempre nela alguma coisa com interesse. Digamos que juntar Vergílio Ferreira e Eduardo Prado Coelho num mesmo prémio só pode ser uma síntese feliz. Quanto à questão da carreira, eu não poria a questão dessa forma. Creio que o que muda a partir de agora é o sentido da responsabilidade, que me é incutido também pelo facto de terem sido premiados em edições anteriores do Grande Prémio de Ensaio da APE grandes ensaístas. Continuo a escrever como sempre até aqui e a dar aulas do mesmo modo. Creio, aliás, que as carreiras se vão fazendo sem nós nos darmos conta disso, de certo modo elas são independentes de nós e do nosso trabalho, pelo menos é assim que eu entendo a questão. Não faço ideia do que está por vir e ainda bem. Escrevo sempre sobre aquilo que me interessa e me motiva e isso é um imenso privilégio.

Pedro Costa: Que a levou a escrever o livro A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira? O que é que considera que a obra de Vergílio possui de tão especial e único entre a demais produção literária nacional? Qual(is) o(s) seu(s) livro(s) preferido(s) na obra do autor e porquê?

Isabel Cristina Rodrigues: Este meu livro, apesar de ter sido publicado apenas em 2016, foi escrito alguns anos antes e foi apresentado como tese de doutoramento à Universidade de Aveiro, em 2006. O contrato de edição com a INCM foi assinado pouco tempo depois, mas, por circunstâncias várias, a publicação foi sendo adiada até 2016, o ano do centenário de Vergílio Ferreira. Uma coincidência feliz. Quando comecei a pensar no tema da minha tese de doutoramento, pensava enveredar por outra questão igualmente importante na obra do autor, até que a relevância do Silêncio se me impôs e tive que mudar de rumo. É uma questão fundamental, que tinha tido já uma ou outra aproximação tangencial no domínio da crítica vergiliana, mas que carecia de um estudo mais abrangente e aprofundado. Foi isso que achei por bem fazer. O que tem Vergílio Ferreira de único que o distingue dos outros escritores? Bom, para além daquilo que nos faz amar um escritor e que escapa muitas vezes à evidência da explicação, creio que Vergílio reúne tudo o que para mim é importante num autor: um domínio da palavra verdadeiramente invulgar, um pensamento consistente sobre o mundo que nos calhou viver, uma sabedoria inata relativamente àquilo que na verdade importa. Há outros escritores igualmente bons na nossa literatura? Claro que há, igualmente bons, eventualmente melhores até, não sei, mas sei que Vergílio Ferreira tem a forma da minha mão. E quando isso acontece não há nada que possamos fazer a não ser dar o nosso tempo e o nosso esforço a quem tudo nos dá também. Gosto muito de muitos livros de Vergílio Ferreira, de uns mais do que de outros, como é normal, e em relação a alguns fui mudando de opinião ao longo do tempo. Hoje creio que Na Tua Face é um romance irretocável, mas também o são Até ao Fim e Em Nome da Terra. São romances de uma beleza agreste, desafiadora, difícil, comovente. Quando os releio “muda-se-me o coração”, como diz num poema o grande Ruy Belo.

Pedro Costa: Para além de Vergílio, há algum outro escritor – nacional ou estrangeiro ou ambos, talvez pudéssemos referir ambos – cuja obra muito aprecia? Por quê?

Isabel Cristina Rodrigues: Bem, isto daria para horas de conversa. Claro que há, há muitos. Saramago e Lobo Antunes mudaram a minha visão da literatura, tal como o fizeram Clarice Lispector ou Tolstoi, ou alguns outros ainda. O Pessoa, claro, o Ruy Belo. Tantos outros ainda. Como seria se eles não tivessem existido? Teria sido uma perda irreparável. Em todos encontro um pensamento próprio sobre o mundo, um modo determinado de olhar que é indesligável da precisão da linguagem que é também a deles e da capacidade inventiva dessa mesma linguagem. São escritores que nos obrigam a convalescer uma vez acabado o livro. E quando isso acontece é porque a doença da sua leitura é um remédio sem preço. Sucedeu-me há tempos atrás uma experiência idêntica ao ler o Impunidade, do H. G. Cancela. Tive que sair para a rua quando acabei o livro. Abençoada doença.

Pedro Costa: Que a levou a estudar Letras – Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Franceses) – em época de Ciências?

Isabel Cristina Rodrigues: Bem, quando eu comecei a estudar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nos idos anos 80, os cursos de Letras estavam cheios de gente. Fui feliz ali como aluna. Mesmo em 1991, quando comecei a dar aulas na Universidade de Aveiro, havia muita gente a estudar literatura. Eram anfiteatros cheios de alunos. O que me levou a estudar literatura? Bom, já então a leitura era um vício, de certa forma um modo de vida também. Passava as férias de Verão a ler. A literatura ensina-nos a ler o mundo, isso mesmo é o que sempre digo aos meus alunos.

Pedro Costa: Recorda-se de quando começou a ler – na infância e na adolescência? Há alguma obra que a tenha marcado em particular?

Isabel Cristina Rodrigues: Recordo-me perfeitamente. A minha vida de leitora deve muito à Enid Blyton, mas sobretudo à leitura fundamental do Cem Anos de Solidão do García Márquez aos 13 anos. Foi uma revelação. Depois veio Os Maias do Eça numas férias de verão, o único livro até hoje cuja leitura me impediu de fazer a vida normal – só voltei à praia depois de o acabar. Por essa mesma altura chegou o Para Sempre do Vergílio Ferreira e nunca mais se foi embora.

Pedro Costa: Pensou, ou tentou, alguma vez dedicar-se a produzir literatura – no sentido de produzir romance ou poesia – em vez de se dedicar à análise da obra dos outros?

Isabel Cristina Rodrigues: Sabe, uma das coisas que o Vergílio Ferreira e o Prado Coelho me ensinaram é que o ensaio não está propriamente fora dos limites do literário. O ensaio é também um espaço de criação, onde pensamento e palavra formam um corpo único. Tenho-me sentido confortável neste espaço, por mais que me digam que eu devia escrever (e de facto dizem). Porque para muita gente escrever só é escrever se for ficção narrativa ou poesia, como se a escrita do ensaio fosse uma escrita menor, uma escrita de segunda. Ora para mim não é, sobretudo porque o tipo de ensaio que me atrai não é o ensaio meramente descritivo, académico no pior sentido do termo, mas aquele que procura implodir qualquer coisa, que procura dar a ver o que nenhuma outra voz poderá mostrar além da própria voz que o escreve.

Pedro Costa: O que está a preparar para o futuro mais imediato? E no longo prazo, há algum trabalho de fôlego que tenha em vista realizar?

Isabel Cristina Rodrigues: Num futuro mais imediato trabalho em conferências dispersas, são textos para colóquios em que participarei nos próximos meses. O primeiro, já em Janeiro, é sobre o Neorrealismo e a criança, organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras de Lisboa. Fora isso, gostaria, num futuro não muito longínquo, de passar a escrever mais sobre poesia. Sou uma grande leitora de poesia, embora tenha escrito pouco sobre o assunto. Vamos ver o que o futuro traz. Mas gostaria que assim fosse.

 

Fique atento! Muito em breve publicaremos um texto de Isabel Cristina Rodrigues sobre o prémio que recebeu..

Imagem de destaque: INCM

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