‘A fome de estar vivo é tão intensa‘. Mesmo assim, Portugal está de luto. Morreu José Mário Branco, o músico inquieto, cantor e compositor que marcou a música portuguesa das canções de resistência ao fascismo até à nova geração do fado.
José Mário Branco morreu esta terça-feira, 19 de novembro, após um acidente vascular cerebral (AVC). O artista contava 77 anos. José Mário Branco, ao longo de meio século de carreira deixou a sua marca na cultura portuguesa, em particular na música. A sua vida, quase sempre indissociável do artista que foi, encontra-se fortemente marcada pela intervenção política, pelo combate às opressões e à desigualdade social.
Inquietação pura
“A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazesSão flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalhaCá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei aindaHá sempre qualquer coisa que está p’ra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Ensinas-me a fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
P’ra ficar pelo caminho
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda
Primeiros tempos
Nascido no Porto, em maio de 1942, filho de professores, viveu a sua infância e juventude em Leça da Palmeira. Começou por ser politicamente ativo na Igreja Católica, tendo depois aderido ao Partido Comunista Português. Como tantos outros, foi, nesse tempo, perseguido pela PIDE, até se exilar em França, em 1963, e onde se manteve até ao 25 de Abril. É em Paris aliás que conhece Sérgio Godinho: “E imediatamente desenvolvemos uma amizade. Começámos a fazer parcerias e letras para aquilo que viria a ser o seu primeiro disco, e o meu primeiro disco, que foram gravados mais ou menos ao mesmo tempo”, recordou o amigo em declarações publicadas no Diário de Notícias. Aí colabora também com José Afonso, nomeadamente em ‘Cantigas do Maio‘, em que é responsável pela direção musical e arranjos tendo mesmo participado na gravação dos passos que se escutam no início de ‘Grândola Vila Morena‘ (ver imagem no final do artigo).
25 de Abril
Nessa altura, regressa a Portugal logo após a Revolução e torna-se uma das figuras carismáticas da cultura portuguesa nos primeiros tempos de liberdade. Para além das inúmeras intervenções musicais, estende a sua atividade ao teatro, integrando o grupo A Comuna, onde veio a conhecer a sua companheira Manuela de Freitas, mas também ao cinema e à ação cultural, fundando com Fausto, Tino Flores e Afonso Dias o GAC – Grupo de Ação Cultural ‘Vozes na Luta’ logo após chegar a Portugal. O GAC dinamizou centenas de sessões de canto em aldeias, fábricas e quartéis por todo o país, participando inclusivamente no Festival da Canção de 1975 com o tema “Alerta”.
A luta continua
Num contexto cultural marcado também pela luta entre as diferentes orientações políticas da esquerda revolucionária, a intervenção política de José Mário Branco nesse tempo foi orientada para o agrupamento das correntes maoístas que viriam a dar origem à UDP, da qual foi fundador e dirigente, tendo sido eleito para a direção da UDP em 1980.
O período pós-revolucionário foi marcado por cisões tanto ao nível partidário como cultural, com as divergências a determinarem igualmente a sua saída do GAC e também da Comuna. É neste período que compõe e edita duas das suas maiores obras musicais, “FMI” e “Ser Solid(t)ário”, que ficariam para sempre como a marca da desilusão por parte de uma geração que entregou a sua juventude ao processo revolucionário e assistia então ao desfazer das esperanças de construir uma sociedade socialista em Portugal. O cantor conclui o período com a canção e autêntico manifesto: “Eu vim de longe, eu vou para longe” do disco “Ser Solid(t)ário”.
Os anos seguintes seriam parcos em edições originais – “A Noite” em 1985 e “Correspondências” em 1990, ambos editados pela editora que criou, a UPAV -, mas férteis em colaborações com outros artistas, assumindo a orquestração, composição e arranjos musicais em trabalhos de velhos parceiros, como José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho ou Janita Salomé, mas também de novos companheiros como os Gaiteiros de Lisboa e Amélia Muge e um novo interesse pelo fado, onde colabora com Carlos do Carmo ou Camané. Edita um álbum de canções – ‘Ao Vivo em 1997‘ – e dois anos depois participa na fundação do Bloco de Esquerda, de que foi membro da Mesa Nacional, num tempo marcado pela mobilização pela independência de Timor, da qual viria a tomar o título do álbum seguinte, já em 2004, “Resistir é Vencer”.
Cinco anos depois, regressa aos palcos ao lado de Fausto e Sérgio Godinho no projeto “Três Cantos” (na foto), com vários dias de concertos no Campo Pequeno, depois editados e álbum e DVD.
O Fim
Em 2018 deu a conhecer um conjunto de canções e composições gravadas com o álbum “Inéditos 1967-1999” e publicou uma antologia integral da sua obra.
Já este ano viu um grupo de artistas prestarem-lhe tributo com o álbum “Um disco para José Mário Branco”, que reuniu nomes como Camané, Ana Deus, Mão Morta, Walkabouts, Peste & Sida, Ermo, Osso Vaidoso, Batida, JP Simões e João Grosso, entre outros.
Os cinquenta anos de carreira de José Mário Branco estão reunidos num arquivo digital criado pelo Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Fontes: DN, Esquerda.net, CESEM, Público, Wikipedia; Imagem: (0) José Mário Branco, (1) CESEM, (2) Patrick Ullmann, (3) Arte Sonora, (4) Sapo24
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