‘História de Uma Família Decente’ descreve a violência como vício

 

 

Num universo ficcional já tantas vezes comparado ao de Elena Ferrante, Rosa Ventrella explora um bairro de Bari, sul de Itália, nos anos 80. Ali, os verões são passados entre os becos e as ruelas, as crianças crescem pelas ruas, o nome de família dita o lugar social e inimigos, homens e mulheres são planetas diferentes.

A violência faz o seu caminho, molda as gentes, perpetua-se. Crescer num ambiente assim parece caminho todo andado para se fazer crescer assim. Os ataques de fúria e o ódio irrompem sem controlo. Por vezes, parece que se odeia porque sim, mas Ventrella conduziu a mão criando um mundo que mostra o carácter vicioso da agressividade. Mais do que ataque, protecção. Mais do que o fulgor do homem que inspira o medo, o homem que está cheio de medo. E não será sempre assim?

Maria cresce em Bari com os dois irmãos mais velhos, a mãe passiva, o pai violento, que “cuspia as palavras envenenadas e depois voltava a engoli-las” (p. 11). Uma certa insolência apanhada na infância valeu-lhe a alcunha que a acompanharia a vida toda: Malacarne, má carne.

Cresce no meio do bullying, a família cria os seus inimigos, e dela se espera que os perpetue. Que veja no outro o outro, que crie uma barreira. Que não pense para além do apelido. Que odeie os Senzasagne porque toda a gente o faz, porque é aquela a gente mais decadente e animal. Mas Michele, o mais novo da família, é o seu melhor amigo, e nem a hostilidade rompe a relação fraternal que os une. É o sentimento fraterno que protegem para não serem carcomidos pelo cinismo da violência, pela fraqueza do rancor.

A realidade do sul de Itália aqui descrita aparece crua e bruta, não romantizando a fraternidade que apareça. Como em A Amiga Genial (Elena Ferrante) ou A Filha Devolvida (Donatella di Pietrantonio), o estudo é encarado como forma de ascenção social. Será este, aliás, o mote para que, nascida no lado pobre errado de Bari, Maria possa trocar a volta ao bairro.

O cliché da história do amor proibido, que poderia parecer o mote do romance, é, afinal, quase dispensável, e o cerne do livro ficaria sem ele intacto, e a vida caleidoscópica manteria o seu padrão. Servindo de pretexto para ligar os eixos da narrativa, confere-lhe um fundo de beleza que poderia existir fora do amor romântico.

História de Uma Família Decente ultrapassa a pequena história do amor de infância, do amor que não sai da pele. Começa na família patriarcal, imiscui-se nas clivagens do bairro, explora ódios e medos, endurecimento, crescimento.

 

Rosa Ventrella – História de uma Família Decente

Editora D. Quixote

Obs: Este artigo foi originalmente publicado em Esquerda.net, tendo sofrido ligeira adequação gráfica na presente edição.

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