A Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia em 1965, foi reeditada pela editora Ponto de Fuga. Lançada pela Afrodite de Ribeiro de Mello, a obra escandalizou o regime e foi censurada. A escritora, o editor e alguns dos poetas da colectânea foram processados e condenados.
A década de 60 foi um período de clara oposição ao Estado Novo, feita especialmente através da escrita literária. Assim, em 1965, a publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica valeu a Natália Correia três anos de prisão (suspensa) por abuso de liberdade de imprensa, assim como aos autores que constavam da antologia: Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e Ernesto Melo e Castro; no ano seguinte, a sua obra O vinho e a lira foi proibida. Para além disto, a autora escreveu A Pécora (1967) e O Encoberto (1969), obras que também foram apreendidas.
Natália Correia afrontou abertamente a ditadura, enfrentando de seguida penas correspondentes aos seus actos insubmissos, como os três anos de pena suspensa pela publicação de uma antologia de poesia erótica; a proibição de representação de algumas das suas peças; a proibição de algumas das suas obras; perseguição por ter editado Novas Cartas Portuguesas. As penas não só não a demoveram como a estimularam a agir mais contra o Estado Novo.
No decorrer do julgamento, o advogado da autora, Palma Carlos, convenceu-a a não ler um poema que escrevera contra os juízes, intitulado “A Defesa do Poeta”, que foi posteriormente publicado em As Maçãs de Orestes (1970), dizendo-lhe que poesia e justiça não deviam ser mescladas e que seria melhor guardar a primeira para usos mais dignos. Considerava que, caso o fizesse, a pena que iria sofrer seria muito mais pesada do que os três anos de pena suspensa. Correia, por sua vez, considerava que o poema em questão era não apenas uma forma de defender-se, mas também de defender os poemas que houvera antologiado. Ao mesmo tempo, seria uma defesa da liberdade dos poetas, daí a utilização do masculino, “poeta”, ao invés da palavra que usava para si mesma, “poetisa”.
No julgamento, Correia discutiu ainda com José-Augusto França, sua testemunha de defesa, por não concordar com o que este dizia a respeito do prefácio, que, embora hoje possa parecer anódino, na altura era visto como ousado. José-Augusto França, para tornar mais fidedigno o seu depoimento de apreço, houvera dito que não estava de acordo com o prefácio, mas empenhado na publicação da obra. Natália não terá gostado daquilo que interpretou como uma crítica e quis discuti-la na sala do tribunal. O juiz não terá gostado da atitude, dizendo-se ali unicamente para o andamento do processo, e não para discutir literatura.
A obra, resultado de um estudo da poesia erótica portuguesa, contém poemas de 94 autores. A lista inclui poemas não só de autores como Camões, Garrett, Pessoa e Herberto Helder ou Bocage e Botto, mas também de cinco anónimos, três do século XVII e dois do século XVIII. Inclui ainda poemas de Maria Teresa Horta, Cesariny e Luiz Pacheco, também eles com obras censuradas pela PIDE, e dois da própria Natália Correia, um deles inédito até então. O resultado da publicação da antologia foi aquilo a que Natália chamou “abalo sísmico”. Afinal, como se atreveria uma mulher a um trabalho a que homem nenhum se houvera dedicado?
Com a obra, Natália pretendia “a revolucionária recriação do mundo a partir do censurável e do proibido”. Para isso, necessitaria de encarecer “o poder físico da palavra” e desintegrá-la do “seu enfeixamento contrastante que a torna ofensiva pela relatividade da lógica discursiva”. Assim, a autora acreditava que a antologia era prova de que as repressões que constrangiam os versos fesceninos se haviam descomprimido.
Assim como assim, o facto é que a obra foi proibida (e com particular escândalo, já que, como foi previamente dito, a autora foi ainda condenada a três anos de prisão com pena suspensa) e, mesmo após o 25 de Abril, tardou a vir a público. Ninguém manifestara interesse em fazê-lo, incluindo Natália Correia. A obra foi, assim, publicada pela primeira vez após a sua publicação em Junho de 1999 (1).
A recepção e a censura de Antologia de Poesia Erótica e Satírica
A obra foi proibida por despacho logo após a sua publicação, tendo sido firmada a data de 30 de Dezembro de 1965. O parecer para a pena, que consta do relatório nº 7677 do arquivo dos livros censurados pela PIDE, dizia o seguinte:
“Apesar do pretensioso prefácio da autora da seleção, eivado de tendências sartreanas e das intenções que daí derivam, não é possível admitir que seja viável a circulação deste livro em Portugal, dado o seu caráter pornográfico.
Este aspecto do livro é acentuado pelo facto de uma das partes mais salientes dele ser a transcrição de poesias editadas outrora em livros clandestinos, atribuídas a Bocage e a Junqueiro, as quais têm sido consideradas apócrifas por muito estudiosos.
Não fica por aqui a falta de escrúpulos revelada nesta obra, pois são apresentadas como inéditos de Antonio Botto, poesias que à mais ligeira análise se verifica não poderem ter sido escritas por esse poeta, a primeira das quais – a que abre o respectivo capítulo – sei eu, de ciência certa, que é de autoria de Vasco de Matos Sequeira, distinto poeta satírico e também lírico, que nunca publicou nenhuma das poesias, limitando-se até agora a colaborar no texto de algumas “revistas do ano” apresentadas nos teatros de Lisboa.
Fica-nos pois a impressão de que esta obra pretende ser a contribuição comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização.
Nestas condições propõe-se a proibição rigorosa deste livro.”
Caberá uma referência à acusação de “tendências sartreanas” da antologia de Correia. Também Sartre era um autor malquerido pelo Estado Novo, tendo seis obras na lista das obras proibidas, o mesmo número que Natália viria a ter: As Mãos Sujas, pela Europa-América (1960); Os Sequestradores de Altona, pela Europa-América (1961); Os Mortos Sem Sepultura, pela Presença (1961); As Moscas, pela Presença (1962); Baudelaire (2), pela Europa-América (1966); e O Escritor não é Político, pela D. Quixote (1971). Pretendia-se, assim, colar Natália a um intelectual que apoiava causas políticas de esquerda publicamente, políticas essas que naturalmente entravam em confronto com as preconizadas pelo Estado Novo. Desta forma, a autora seria vista como uma inimiga do Estado, numa oposição que seria visível muito para além da sua obra literária, já que não atentaria somente a moral oficial. Ainda assim, este atentado desempenharia um papel de destaque na apreensão da obra, daí que, para diminuí-la, a PIDE a tenha considerado “pornográfica”. Como já acontecera antes, a expressão do erotismo era considerada uma afronta inadmissível à moral do Estado, principalmente se levada a cabo por uma mulher que afrontava uma moral que tentava desprover a sociedade do erotismo e que tentava ainda que coubesse aos homens o direito de decidir sobre o que faziam as mulheres, impondo-lhes a domesticação. A acusação de pornografia serviria ainda para a deslegitimação da autora tanto do ponto de vista moral como do político.
O parecer da PIDE acusa ainda a obra de revelar “falta de escrúpulos”, dizendo que poemas cuja autoria é apontada como sendo de António Botto seriam, na verdade, obras de Vasco de Matos Sequeira. O relator diz saber “de ciência aberta” que a autoria seria deste último, que nunca houvera publicado nenhum dos poemas apontados como inéditos de António Botto, cedidos por Francisco Esteves. Nada leva a crer que o relator da PIDE esteja correcto, e para isso muito contribui a total ausência de argumentos ou de provas do parecer. Os dois poemas têm sido comummente aceites pela historiografia literária como firmados por António Botto.
Finalmente, o parecer da PIDE indica a obra como “contribuição comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização”, proibindo, por isso, rigorosamente, a sua circulação. Tentar colar a autora ao comunismo será uma interpretação claramente forçada. O Estado Novo via no comunismo a ameaça principal e tentava espalhar a sua imagem enquanto imagem de terror e considerar Natália Correia comunista serviria para mostrá-la enquanto inimiga do Estado. Contudo, a verdade é que a autora nunca teve qualquer proximidade com o marxismo. O Estado Novo tentava fazer do comunismo e da oposição a mesma coisa. Desta forma, e porque o comunismo seria o grande inimigo do regime, qualquer pessoa que se opusesse ao último seria igualmente um alvo a abater, moral e politicamente.
Reedição em 2019
A Ponto de Fuga lançou agora uma reedição desta obra, juntando-lhe dois textos introdutórios. O primeiro é assinado pelo próprio editor, Vladimiro Nunes, que procura reconstituir a história da antologia; o segundo, de Francisco Topa, ensaísta e professor, recorda o longo processo judicial a que o livro deu origem.
(1) Isto para além de uma edição pirata, pela F. A. Edições S. A., não datada, mas anterior, no Rio de Janeiro.
(2) A proibição desta obra variava entre a metrópole e as colónias. Por ter sido de alguma forma censurada, optamos por incluí-la aqui.
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Obs: este texto foi publicado previamente em Esquerda.net tendo sofrido uma ligeira adequação na presente edição.
Imagens: (0) Ponto de Fuga, (1, 2) Relatório da PIDE sobre a obra/Torre do Tombo (fotografias de Ana Bárbara Pedrosa)
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